Crítica | A Própria Carne é um terror quando o discurso tenta substituir a imagem
Jovem Nerd/Divulgação

Crítica | A Própria Carne é um terror quando o discurso tenta substituir a imagem

O terror, ao menos no cinema, tem uma essência quase visceral: é algo que precisa se fazer presente, que nos cerca, que nos agarra pela imagem, pelo som, pela atmosfera. Quando assistimos a um filme desse gênero, esperamos que ele nos arraste para um espaço de desconforto, de apreensão, onde o medo se construa a partir do invisível, do incompreensível, do não-dizível. Mas o que vemos em A Própria Carne é exatamente o oposto; um filme que fala muito sobre o que tememos, mas que não consegue nos mostrar o suficiente para que realmente sintamos esse medo. A palavra, por mais ameaçadora que seja, não é capaz de substituir a imagem no cinema, e, em um filme de terror, é precisamente o que vemos – ou não vemos – que deve nos dar a sensação de perigo. E A Própria Carne, com sua verborragia excessiva e escolhas visuais falhas, acaba deixando o público distante da tensão que deveria ser o motor da trama.

Dirigido por Ian SBF (“Entre Abelhas”), o longa tenta se estabelecer como um terror psicológico ao mesmo tempo em que flerta com o gore, criando uma atmosfera de tensão que oscila entre momentos de grande violência explícita e sequências de pura verbalização do medo. Ambientado no contexto da Guerra do Paraguai, o filme se passa em uma casa isolada e cheia de mistérios, com personagens que carregam segredos e traumas não resolvidos. Contudo, apesar de sua premissa interessante, o filme falha ao não conseguir traduzir visualmente os mistérios que tenta construir. A Própria Carne se torna uma sucessão de cenas que tentam explicar o tempo todo o que está acontecendo, sem nunca realmente criar uma sensação de imersão.

A fotografia é um dos primeiros aspectos que chamam a atenção, mas nem sempre de maneira positiva. A paleta de cores escolhida, com tons excessivamente frios e azulados, transforma o ambiente da casa em algo artificial e distante. Ao invés de criar a tensão esperada, ela apaga as fronteiras entre os personagens e o cenário, deixando os elementos do filme com uma aparência quase onírica e desprovida de sentido.

Crítica | A Própria Carne é um terror quando o discurso tenta substituir a imagem
Jovem Nerd/Divulgação

Estamos constantemente acompanhando os rostos dos personagens em closes apertados, o que nos dá uma falsa impressão de proximidade com suas emoções. No entanto, a câmera nunca nos revela o suficiente do espaço ao redor, nos deixando sem uma ideia clara do que está em jogo, de onde o perigo pode vir. Se, por um lado, isso poderia criar uma sensação de claustrofobia, por outro, acaba tornando a casa e seus mistérios irrelevantes, como se o lugar nunca fosse realmente importante. O medo, ali, não é algo concreto. Ele está no ar, mas nunca se materializa de forma convincente.

O grande problema de A Própria Carne está, sem dúvida, no ritmo e na estrutura do roteiro. O filme depende excessivamente de diálogos e explicações para gerar tensão, mas a grande ironia é que as palavras – muitas vezes bem escritas, mas desnecessárias – acabam minando qualquer possibilidade de suspense. O vilão, por exemplo, está sempre falando sobre o que fará, sobre o que sabe, sobre o que vai acontecer. Sua verborragia tenta, sem sucesso, gerar uma ameaça, mas o fato de ele falar tanto acaba enfraquecendo sua presença, transformando-o mais em uma figura caricatural do que em uma verdadeira força do mal. O maior exemplo disso está em uma das cenas mais aguardadas do filme, em que um personagem ameaça serrar a perna de outro. Ao invés de usar a imagem para criar um momento de tensão visceral, a cena se torna um desfile de palavras, enquanto a câmera nunca se aproxima da serra, dos corpos, do que poderia gerar o impacto visual necessário. O filme, em sua ânsia de ser um thriller psicológico, se perde ao tentar transmitir a tensão por meio de falas que, ao invés de inquietar, apenas cansam.

A comparação com podcasts de RPG – obras das quais o grupo Jovem Nerd ficou popular pela produção autoral de alta qualidade em áudio –, onde a narrativa se constrói quase que exclusivamente por meio de palavras e sons, não parece exagerada. Em um podcast, a construção do terror depende inteiramente da oralidade, mas no cinema, o que temos é uma linguagem diferente. O audiovisual exige que a história se conte por meio de imagens e sons que se complementam. E A Própria Carne falha exatamente ao ignorar essa premissa básica do cinema. Em vez de deixar que o silêncio ou o movimento da câmera construam o clima, o filme se apoia em diálogos que explicam o que está acontecendo, sem jamais nos dar tempo ou espaço para sentir realmente o que seus personagens estão passando.

O elenco, por sua vez, tem bons momentos, mas acaba sendo prejudicado pelo ritmo da direção. Luiz Carlos Persy, no papel do antagonista, consegue se destacar com sua presença e sua voz grave, que poderia ser ameaçadora, caso o roteiro e a direção permitissem que sua personagem fosse mais do que uma série de palavras repetidas. Jade Mascarenhas também consegue, com seu trabalho, dar algo de novo ao papel, mas novamente o roteiro não permite que sua personagem evolua. O ex-escravo, por sua vez, está ali apenas para servir a um mistério que nunca chega a ser desvendado de forma satisfatória, tornando sua busca por respostas algo mais tedioso do que interessante. Se o elenco não chega a comprometer o filme, a direção e o roteiro, com sua falta de coesão, fazem com que as boas atuações não sejam suficientes para levantar a narrativa.

Crítica | A Própria Carne é um terror quando o discurso tenta substituir a imagem
Jovem Nerd/Divulgação

Em relação aos efeitos visuais, o gore é uma surpresa. Algumas cenas de violência, especialmente as mais explícitas, são bem executadas e funcionam para chocar, mas novamente, o filme falha em explorar o impacto desses momentos de forma a integrá-los à narrativa. O gore parece estar ali apenas para preencher um espaço vazio, para criar algum tipo de excitação, mas não há um trabalho de construção para que esses momentos se conectem de forma orgânica com o restante do filme.

Quando o filme finalmente chega ao seu clímax, a frustração é inevitável. O mistério nunca é realmente resolvido, deixando o público com mais perguntas do que respostas. Há uma tentativa de deixar um gancho para uma possível sequência, mas o que isso acaba gerando é a sensação de que o filme simplesmente não teve coragem de concluir sua história.

No fim das contas, em A Própria Carne, o que falta é justamente o essencial: a capacidade de mostrar e não apenas de falar sobre o medo. O filme tenta nos envolver com uma história de mistérios e horrores, mas, no fim, nos deixa com a sensação de que, por mais que tenha falado muito, ele nunca realmente nos mostrou o que temia. O excesso de diálogo, a falta de uma construção visual sólida e a dependência do mistério sem resolução criam um filme que promete muito e entrega pouco. Se o cinema, no caso do terror, é sobre a experiência sensorial, A Própria Carne falha em nos fazer sentir o que deveria ser o seu maior trunfo: o medo.

Leia outras críticas:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.