Imagine um mundo onde os encontros românticos são programados, as mulheres são moldadas para agradar e a realidade é tão manipulável quanto um aplicativo de celular. Agora, pense em como o cinema, essa máquina de contar histórias, pode refletir — e até mesmo criticar — essa dinâmica. É nesse terreno pantanoso entre o real e o ficcional que Acompanhante Perfeita, dirigido por Drew Hancock, decide pisar. O filme começa como uma comédia romântica clichê, com um encontro desastrado em um supermercado, mas logo revela suas cartas: não se trata de uma história de amor, e sim de controle, violência e libertação.
A trama gira em torno de Iris, uma robô ultratecnológica interpretada por Sophie Thatcher, que foi projetada para ser a companheira perfeita. No início, ela parece apenas uma jovem insegura, tentando se encaixar em um grupo de amigos durante uma viagem a uma casa no lago. Mas a revelação de sua verdadeira natureza não demora a surgir, e é aí que o filme começa a se desdobrar em camadas. Iris não é apenas uma máquina; ela é um espelho das expectativas que a sociedade coloca sobre as mulheres. Sua jornada é a de quebrar essas expectativas e assumir o controle de sua própria existência.
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O que chama a atenção logo de cara é a maneira como o filme lida com a revelação central. Em vez de guardá-la para um grande momento de surpresa, Hancock opta por revelar que Iris é um robô já no primeiro ato. Essa escolha pode parecer arriscada, mas é justamente o que permite ao filme explorar temas mais profundos. A questão não é “se” Iris é uma máquina, mas “como” ela lida com essa condição e como os outros a tratam. É uma abordagem inteligente, que tira o foco do “twist” e o coloca na evolução da personagem.
Thatcher é o coração do filme. Sua interpretação de Iris é delicada e poderosa ao mesmo tempo. Ela consegue transmitir a rigidez robótica da personagem sem perder a humanidade, algo que é essencial para que o público se conecte com sua jornada. Seus olhos expressivos e seu sorriso tenso são pequenos detalhes que fazem toda a diferença, criando uma personagem que é ao mesmo tempo artificial e profundamente real. Jack Quaid, como Josh, também merece elogios. Seu personagem é o típico “bom moço” que, no fundo, é apenas mais um homem obcecado por controlar a mulher ao seu lado. Quaid consegue equilibrar a charmosa fachada de Josh com sua mediocridade e egoísmo, tornando-o um antagonista muito reconhecível.
Visualmente, o filme é uma mistura interessante de estilos. A fotografia limpa e dessaturada cria uma atmosfera levemente futurista, enquanto o figurino e a maquiagem de Iris reforçam sua artificialidade. Sua pele excessivamente branca e suas roupas de corte impecável a destacam em meio aos outros personagens, mas também servem como alegoria para sua condição. Quando o sangue começa a manchar suas roupas, o contraste entre a perfeição inicial e a violência que ela enfrenta se torna ainda mais impactante.
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No entanto, a direção de Hancock, embora competente, peca em criar tensão consistente. A cena da perseguição na floresta, por exemplo, poderia ter sido muito mais impactante se a edição e a cinematografia tivessem sido mais dinâmicas. Em vez disso, o uso de movimentos de câmera escolhidos pelo diretor tira a urgência da cena, deixando-a sem o impacto emocional que poderia ter. Esse é um dos momentos em que o filme parece mais refém do roteiro do que da linguagem cinematográfica.
Outro ponto que divide opiniões é o tom do filme. Acompanhante Perfeita oscila entre horror, comédia e drama, mas nem sempre consegue equilibrar esses elementos de forma harmoniosa. Enquanto algumas cenas de humor funcionam bem, outras parecem deslocadas, especialmente quando o filme adentra territórios mais sombrios. Essa inconsistência tonal pode ser vista como um reflexo da complexidade da narrativa, mas também pode ser interpretada como uma falta de foco por parte do diretor.
Apesar dessas falhas, o filme acerta em seu comentário social. A relação entre Josh e Iris é um lembrete para a maneira como as mulheres são frequentemente reduzidas a objetos de desejo e controle. Josh vê Iris como um brinquedo, algo que existe para satisfazer suas necessidades e mascarar suas próprias inseguranças.
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No entanto, ao longo do filme, Iris toma consciência de sua condição e luta para se libertar dessa visão distorcida. Essa jornada de empoderamento é representada de forma visualmente impactante — e divertida! —, especialmente quando Iris acessa o aplicativo que a controla e aumenta seu nível de inteligência, assumindo o controle de sua própria existência.
O roteiro também merece destaque por sua habilidade em subverter clichês. Em vez de apresentar Iris como uma vítima desamparada, o filme a coloca no centro da ação, permitindo que ela tome decisões e lute por sua liberdade. Essa inversão de papéis é refrescante e necessária, especialmente em um gênero onde as mulheres são frequentemente relegadas a papéis secundários ou estereotipados.
O final do filme, embora previsível. A conclusão reforça a ideia de que a luta por autonomia e igualdade é árdua e cheia de obstáculos, mas não impossível. Ao final, Acompanhante Perfeita se revela como uma obra que, embora imperfeita, consegue entreter e provocar reflexões sobre gênero, tecnologia e poder.
No início, o filme nos apresenta uma ficção dentro da ficção, um conto romântico que logo se desfaz para revelar uma realidade muito mais sombria. Ao final, essa mesma ficção é desconstruída, e Iris emerge como uma figura que transcende as expectativas impostas sobre ela. E, nesse processo, nos lembra que a verdadeira liberdade começa quando tomamos as rédeas de nossa própria história.
E talvez seja essa a maior ironia de Acompanhante Perfeita: enquanto Josh tenta controlar Iris através de uma ficção, é ela quem, ao final, assume o controle da narrativa. E, nesse sentido, o filme não é apenas uma crítica ao controle masculino, mas também um lembrete de que, por mais que tentem nos definir, sempre podemos reescrever nosso próprio roteiro.
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