Crítica | Ainda Estou Aqui: a força de uma mãe e a luta pela memória
Sony Pictures/Divulgação

Crítica | Ainda Estou Aqui: a força de uma mãe e a luta pela memória

“Eles querem que a gente fique triste. Nós vamos sorrir, sorriam!”, diz Eunice Paiva (Fernanda Torres) aos seus filhos, enquanto a família, sem seu patriarca, posava para uma foto à imprensa. Ainda Estou Aqui, o trabalho mais recente de Walter Salles (“Central do Brasil”), pode ser resumido nessa frase. É sobre sorrir, mesmo quando eles te tiram tudo. É sobre uma mãe, que tira forças de onde parece não ter, para seguir em frente.

Ainda Estou Aqui?

Em Ainda Estou Aqui, Salles constrói uma obra que transcende o drama familiar e se posiciona como uma contundente crítica política à história recente do Brasil, ao explorar as consequências brutais da ditadura militar sobre aqueles que ousaram resistir. Com base no livro de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado e ativista desaparecido Rubens Paiva, o filme ilumina as profundas marcas deixadas pela repressão política, ao mesmo tempo que presta uma homenagem poderosa à resiliência feminina diante da tragédia.

O filme retrata a dor da família Paiva, com destaque para Rubens (Selton Mello), o pai amoroso e intelectual, que é brutalmente arrancado de seu lar em 1971 por agentes da ditadura. A narrativa acompanha o colapso emocional e a luta incansável de Eunice, interpretada de forma magistral por Fernanda Torres, que se torna o pilar de resistência da família. Através de sua personagem, o filme explora como as mulheres, muitas vezes deixadas para trás no discurso oficial, se tornaram as guardiãs da memória e da sobrevivência durante esses tempos sombrios.

Um dos aspectos mais marcantes de Ainda Estou Aqui é o seu uso da fotografia e da iluminação, conduzidos pelo diretor de fotografia Adrian Teijido. As imagens em 35 mm, saturadas e vibrantes, capturam a intensidade emocional dos personagens, contrastando momentos de calor familiar com a falta de luz natural e muitas sombras, a partir do momento que agentes do governo adentram na casa dos Paiva e cobrem todas as janelas com cortinas.

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A escolha por uma iluminação naturalista nos espaços domésticos, com cenários densamente ocupados e realistas, reforça a sensação de intimidade e vida interrompida. As cenas externas, por sua vez, utilizam a luz para criar uma atmosfera de constante vigilância e medo, como nos momentos em que Eunice observa, à distância, os tanques militares tomando as ruas, uma visão fria e ameaçadora.

A direção de Salles é meticulosa e confiante, alternando habilmente entre o thriller político e o drama familiar. A tensão é construída com sutileza, através de pequenos gestos e olhares, como o breve momento em que Rubens entrega uma camisa à filha Eliana antes de ser levado pelos agentes, uma despedida silenciosa mas cheia de significado. A habilidade de Salles em equilibrar o pessoal e o político dá ao filme aquela dimensão que alguns gostam de chamar de universal, mostrando que o terror do regime não foi apenas uma tragédia nacional, mas uma experiência humana compartilhada por muitos ao redor do mundo.

O trabalho de Salles em Ainda Estou Aqui também se destaca pela forma como ele aborda a memória e o legado de uma família marcada pela violência política. Eunice, interpretada de forma monumental por Fernanda Torres, não é apenas uma figura de dor, mas de força e persistência.

Luta Contra o Esquecimento

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A partir de sua protagonista que Salles bebe de “Cabra Marcado Para Morrer”, de Eduardo Coutinho. Destacando a resiliência das matriarcas em ambos os filmes. As protagonistas, Eunice Paiva e Elizabeth Teixeira, são apresentadas como símbolos de resistência diante da repressão política, após perderem seus maridos durante regimes ditatoriais no Brasil.

Salles retrata Eunice como uma mulher que, mesmo diante do desaparecimento de Rubens Paiva, sua luta não termina com a morte dele, mas se transforma em um compromisso vitalício com a verdade e a justiça, refletido em seu envolvimento posterior como ativista ambiental e na sua insistência em manter viva a memória de Rubens, como uma forma de resistência ao apagamento histórico. A cinematografia de Teijido reforça essa resistência, com uma abordagem íntima e naturalista. Já Coutinho, documenta a trajetória de Elizabeth Teixeira, que assume a liderança na preservação da memória de seu marido, o líder camponês João Pedro Teixeira, assassinato em 1962. Com uma abordagem documental direta, Coutinho mostra Elizabeth como uma figura de resistência coletiva.

Ambos os filmes exploram a importância da memória e da luta feminina, utilizando estilos distintos — um mais cinematográfico e outro documental —, mas com o mesmo objetivo de evidenciar a força dessas mulheres na preservação da história e na resistência contra a repressão.

Pobre bilionário

No longa, Salles explora sua profunda conexão com a história política brasileira, sugerindo uma tentativa de compensar, através da arte, o privilégio de ser herdeiro de uma das famílias mais ricas do país. Como filho de Walter Moreira Salles, o banqueiro mais influente do século XX no Brasil, Salles cresceu cercado pelo poder econômico e social, mas seu cinema reflete uma consciência crítica desse privilégio.

O filme, baseado na história real do desaparecimento de Rubens Paiva durante a ditadura militar, é um exemplo dessa busca por reconciliação. Ao retratar a luta e a dor de uma família devastada pelo regime, Salles parece enfrentar sua própria culpa, usando o cinema como uma ferramenta de denúncia e reflexão. Através de seu trabalho, ele não apenas dá voz a histórias de opressão, mas também tenta equilibrar o peso de seu legado com um compromisso político, trazendo à tona questões de injustiça social que, muitas vezes, são silenciadas pelo poder econômico que ele mesmo herdou.

Intimidade e Distância

Em termos narrativos, Salles não simplifica o impacto do desaparecimento de Rubens, mas expande essa perda para mostrar como a ditadura destruiu lares, sonhos e futuros. A cena inicial, um animado Natal em 1970, estabelece a descontração e felicidade de uma família que, aparentemente, tem tudo – apenas para ser abruptamente interrompida pela brutalidade do regime. O contraste entre o ambiente festivo e a subsequente invasão da polícia política cria uma sensação de vulnerabilidade que permeia todo o filme.

A linguagem visual, especialmente por meio da direção de planos, câmeras e o uso dos espaços vazios, para sufocar Eunice. Esses recursos cinematográficos criam uma atmosfera de tensão constante e introspecção, enquanto explora o trauma da ausência, tanto física quanto emocional.

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Os planos fechados são amplamente utilizados nas cenas mais emocionais, destacando a relação entre os personagens, como nos momentos em que Eunice interage com seus filhos, tentando manter a estabilidade emocional em meio ao caos. Esses planos próximos revelam o isolamento interno dos personagens, capturando expressões sutis de medo e dor. A câmera se aproxima para dar ao espectador um acesso ao sofrimento contido, tornando palpável a angústia vivida pela família Paiva.

Em contrapartida, Salles utiliza planos abertos para destacar a vastidão dos espaços, muitas vezes vazios, onde a repressão se infiltra. Esses planos revelam a solidão dos personagens em ambientes antes preenchidos por calor familiar, retratados no primeiro ato do longa. Quando Rubens Paiva é levado de casa, a ausência dele nos espaços familiares é marcada por planos que capturam cômodos vazios ou parcialmente preenchidos, enfatizando a ruptura causada pela violência política. Esses espaços vazios não são apenas físicos, mas simbolizam a ausência emocional e psicológica que permeia o filme.

No entanto, há algumas falhas que comprometem a profundidade emocional do filme, especialmente no primeiro ato. A representação quase idealizada da família Paiva, como uma “família de comercial de margarina”, nesse ambiente de felicidade ininterrupta, soa, por vezes, forçada e irreal. Embora esse retrato excessivamente perfeito não enfraqueça a transição para o conflito central, parece que Salles quis criar uma dicotomia que parece artificial.

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Com Ainda Estou Aqui, Salles vai além de narrar a trajetória de uma família, ele revive a memória de uma nação, trazendo-a para o presente e nos lembrando da urgência contínua na busca por justiça e verdade. O filme se afirma como um marco não só no cinema brasileiro, mas também como parte de um esforço essencial para preservar as memórias das atrocidades cometidas, garantindo que nunca sejam esquecidas ou repetidas.

O ponto central dessa narrativa é a poderosa atuação de Fernanda Torres, que encarna Eunice Paiva com uma profundidade emocional rara. Sua performance é o coração pulsante do filme, transmitindo a resiliência de uma mulher que carrega o peso da perda e da luta em cada gesto e olhar. Torres não apenas dá vida à personagem, mas personifica o espírito de resistência de todas as mulheres que enfrentaram a ditadura. Ainda Estou Aqui se transforma, assim, em um tributo tanto à memória dessas figuras heroicas, quanto à força do cinema enquanto ferramenta poderosa de denúncia e transformação social.

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