O grande dilema de Ainda Não é Amanhã não está apenas no enredo, mas na própria estrutura do filme. Janaína (Mayara Santos), uma jovem negra do Recife que enfrenta uma gravidez indesejada, vive uma espera angustiante – entre o diagnóstico e a decisão, entre o medo e a ação. Curiosamente, essa mesma tensão entre espera e escolha se reflete na linguagem cinematográfica adotada por Milena Times em sua estreia na direção. O filme é, ao mesmo tempo, um estudo íntimo sobre autonomia feminina e um exercício de contenção narrativa que, embora bem-intencionado, nem sempre atinge a potência que o tema exige.
A opção pelo realismo silencioso tem suas virtudes. A câmera acompanha Janaína em planos próximos, quase claustrofóbicos, como se o espectador estivesse preso junto a ela naquele quarto apertado, na fila do posto de saúde, no banheiro onde encara seu próprio reflexo. A fotografia vai tons terrosos e luz natural, reforça a asfixia do cotidiano. Não há dramaticidade excessiva nos enquadramentos – e essa é justamente a escolha mais arriscada do filme. Times prefere mostrar a rotina em vez do clímax, o suspiro em vez do grito.
Essa decisão tem um propósito claro de evitar o sensacionalismo que costuma cercar narrativas sobre aborto no cinema. Em vez de sangue e sofrimento explícitos, temos a quietude de uma mulher pensando. Em vez de diálogos inflamados, temos olhares que carregam mais peso do que palavras. Mayara Santos entrega uma performance contida, mas cheia de camadas – seu rosto é um mapa de hesitações e pequenas coragens. Quando ela ouve o coração do feto no ultrassom, a câmera não se afasta, não recua para um plano dramático. Fica ali, grudada nela, como se não houvesse escapatória.
No entanto, é justamente essa recusa ao drama que, em alguns momentos, esvazia o impacto emocional do filme. A montagem, de Marina Kosa, com cortes lentos e cenas que se estendem em tempo real, reforça a sensação de espera, mas também diminui o ritmo a ponto de tornar algumas passagens estáticas demais. As metáforas visuais – como os pesadelos de Janaína ou sequências subaquáticas – parecem desconectadas do tom documental do resto da obra, como se a diretora hesitasse entre o realismo cru e o cinema mais poético. O resultado é de um file que, embora belo, nem sempre consegue sustentar a urgência do seu tema.

A escolha pela contenção também se reflete no roteiro. As personagens falam baixo, não se interrompem, não explodem – mesmo em situações que pediriam conflito. Há uma certa higienização nas interações, como se o filme temesse deixar suas personagens serem desagradáveis, caóticas ou contraditórias. Isso fica claro no contraste entre as cenas domésticas, onde tudo é medido, e a única sequência que realmente quebra esse padrão: a aula de direito em que Janaína escuta argumentos jurídicos sobre “o direito à vida”. Ali, a ironia é tão cortante que quase desequilibra o filme – porque, pela primeira vez, a raiva transborda.
Talvez essa seja a grande questão de Ainda Não é Amanhã. Enquanto Janaína vive uma espera repleta de incertezas, a direção parece esperar demais do espectador. Há uma recusa em mergulhar fundo no caos emocional da protagonista, como se o filme preferisse manter uma distância segura. Essa escolha pode ser lida como respeito à sua personagem, mas também como uma limitação narrativa. Afinal, a vida real é bagunçada – e um tema como o aborto, especialmente no Brasil, raramente se resolve em sussurros.

Ainda assim, o filme tem momentos de brilho inegável. A cena entre Janaína e sua mãe é uma joia de delicadeza e tensão não dita. A fotografia captura o Recife mostrando como uma cidade que é cenário, mas nunca estereótipo. E Mayara Santos carrega o longa com uma presença magnética, mesmo quando o roteiro a deixa à deriva de suas próprias metáforas.
Ainda Não é Amanhã é um filme importante, mas não totalmente realizado. Sua força está naquilo que ousa sugerir, não no que de fato mostra. Tal como Janaína, a obra parece hesitar – entre a vontade de ser um retrato cru e o medo de perder o controle. E talvez essa seja sua verdade mais dura: assim como o aborto no Brasil, o filme é marcado pela espera de um amanhã que, sabemos, ainda não chegou.
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