Crítica | Amores à Parte abre a relação para a gente rir das nossas próprias contradições
NEON/Divulgação

Crítica | Amores à Parte abre a relação para a gente rir das nossas próprias contradições

É curioso perceber como alguns filmes chegam em silêncio, quase escondidos por trás da avalanche de blockbusters e dos filmes de terror espertinho, mas acabam se revelando como sopros de frescor numa sala de cinema. Amores à Parte, dirigido e estrelado por Michael Angelo Covino, é exatamente isso. o longa é uma dessas pequenas revoluções discretas que devolvem ao público o prazer de rir coletivamente, de se surpreender com um humor simples sem deixar de ser cinematograficamente sofisticado, nascendo da organicidade das relações humanas.

Desde a estreia em Cannes, Amores à Parte tem carregado ares de resgate – não apenas do gênero, mas também da tradição do cinema de médio orçamento, aquele que sustentou Hollywood por décadas antes de se perder em fórmulas de bilheteria infladas.

Em Amores à Parte, Carey (Kyle Marvin) tem a vida virada do avesso quando sua esposa Ashley (Adria Arjona) admite uma traição e pede o divórcio. Fragilizado, ele busca apoio nos amigos Julie (Dakota Johnson) e Paul (Covino), mas acaba descobrindo que o casamento “perfeito” deles é, na verdade, aberto. Tentando superar a dor e experimentar novas possibilidades, Carey decide adotar a mesma ideia, escolha que rapidamente foge do controle e desencadeia uma espiral de caos emocional.

O longa nasce de uma parceria criativa sólida entre Covino e Kyle Marvin, também ator e co-roteirista. Há um senso de cumplicidade entre os dois que transborda para a tela, seja na química de seus personagens, seja na fluidez das ideias que exploram sobre relacionamentos contemporâneos. E aqui não se trata de uma comédia romântica convencional, mas de uma abordagem irônica, às vezes cruel, sobre o caos emocional que permeia o amor moderno. O filme se equilibra entre o absurdo e a naturalidade, um contraste que se sustenta tanto pelo texto quanto pelo uso inteligente da linguagem cinematográfica.

É notável como Covino constrói o riso a partir do enquadramento e da decupagem. Ele não se apoia exclusivamente em diálogos espirituosos ou no humor físico explícito, ainda que ambos estejam presentes em momentos marcantes. Sua habilidade está em trabalhar o campo e o fora de campo como armas de timing cômico. A primeira grande piada do longa – a revelação tardia de um detalhe que estava ali exposto sem que a câmera o mostrasse de imediato – é um exemplo de como a direção domina o olhar do espectador, conduzindo-o a rir no momento certo, quase como uma armadilha visual. Outro exemplo está na cena de briga na escada, onde a câmera permanece estática, observando o vazio enquanto vozes, ruídos e objetos quebrando preenchem o espaço fora do quadro. O riso nasce do tempo dilatado e da espera pelo retorno dos personagens, que chegam já desfigurados pela confusão. É humor construído com câmera, ritmo e silêncio, não apenas com falas.

Crítica | Amores à Parte abre a relação para a gente rir das nossas próprias contradições
NEON/Divulgação

Essa aposta na linguagem visual é potencializada pela fotografia, que foge do polimento artificial tão presente nas comédias recentes. A luz é naturalista, quase banal em alguns momentos, o que só reforça a sensação de proximidade com a vida real. Quando tudo ao redor parece comum, o riso explode com ainda mais força, porque nasce do contraste entre a normalidade visual e o comportamento disparatado dos personagens. É nesse ponto que o filme dialoga com o cinema de Alexander Payne e até mesmo com a secura irônica de “Closer – Perto Demais”, mas sempre filtrado por uma pegada escrachada próxima do universo de Seth Rogen.

As atuações sustentam essa construção com vigor. Dakota Johnson – que, particularmente, considero uma das piores atrizes de Hollywood – entrega uma performance surpreendente, equilibrando fragilidade e firmeza com uma precisão rara, mas sem nunca deixar de soar engraçada mesmo nos momentos mais densos. Arjona, ainda que com menos tempo de tela do que merecia, brilha em cada aparição, trazendo calor e imprevisibilidade para o grupo central. Marvin, com seu humor despretensioso, funciona como cola entre os personagens, e Covino, além da segurança atrás da câmera, prova ser um intérprete versátil, oscilando entre a doçura e a vilania com naturalidade. A química entre os quatro é o que transforma o absurdo em algo plausível.

Se a montagem é um dos grandes trunfos do filme, isso se deve à forma como organiza as cenas sem pressa, permitindo que o tempo se alongue até a situação atingir um nível de ridículo inevitável. A comédia aqui não é apressada nem ansiosa por aprovação, mas se desenvolve como um convite ao espectador: esperar junto, rir junto, compartilhar a cumplicidade de uma piada que não precisa ser explicada. Esse ritmo também reforça a dimensão humana dos personagens. Por mais equivocados ou “errados” que sejam em suas atitudes, nunca são tratados como caricaturas descartáveis. Há sempre espaço para uma camada de humanidade que impede que a comédia vire mero escárnio.

Outro mérito é que Amores à Parte recusa o cinismo fácil que domina boa parte do humor atual. Covino e Marvin não tentam reduzir os dilemas contemporâneos a slogans ou ironias que twitteiros costumam destilar sobre relacionamento abertos. Ao contrário, permitem que as contradições existam, que os personagens oscilem entre desejo e culpa, coragem e covardia, amor e egoísmo. O riso, nesse caso, não nasce da ridicularização de um tema do momento, mas da observação de como somos incoerentes e, justamente por isso, engraçados.

Claro, o filme não é isento de fragilidades. Em certos trechos, sobretudo quando se aventura em territórios mais sérios da relação entre os personagens de Johnson e Covino, há uma queda perceptível de ritmo, quase como se o longa precisasse justificar sua densidade dramática. São momentos que flertam com o clichê romântico, ainda que sejam pontualmente resgatados por diálogos bem escritos ou por cenas de impacto, como o embate próximo ao final, de grande intensidade emocional. Também é possível sentir falta de uma presença mais marcante de Arjona na narrativa principal, já que sua personagem só se integra de forma plena no terço final.

Crítica | Amores à Parte abre a relação para a gente rir das nossas próprias contradições
NEON/Divulgação

Ainda assim, nada disso compromete o frescor da obra. Ao contrário, essas pequenas irregularidades acabam reforçando a sensação de um filme que se arrisca, que não teme experimentar e que prefere abraçar a imperfeição do acaso a se aprisionar em fórmulas testadas de comédias românticas. É justamente essa liberdade criativa que devolve vitalidade ao gênero, lembrando que rir no cinema é mais do que seguir o roteiro de uma comédia pasteurizada; é ser surpreendido por situações absurdas, gestos fora de lugar e olhares que se alongam mais do que deveriam.

Amores à Parte é, no fim, um gesto de amor ao próprio riso. É a prova de que a comédia, quando feita com coragem e inventividade, pode ser não apenas divertida, mas também reveladora sobre quem somos e como nos relacionamos. No cenário atual, ver uma obra de médio orçamento alcançar esse equilíbrio é quase um alívio. E se comecei dizendo que o longa devolve ao público o prazer de rir coletivamente, termino com a convicção de que essa é, até agora, a comédia mais memorável do ano.

Leia outras críticas:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.