Crítica | Amores Materialistas: O amor no banco dos réus do capitalismo
A24/Divulgação

Crítica | Amores Materialistas: O amor no banco dos réus do capitalismo

Celine Song equilibra a crueldade e elegânncia na maneira como ela filma as relações humanas em Amores Materialistas. Como quem abre uma planilha de Excel para medir afetos, a diretora sul-coreana-canadense retoma o controle de sua narrativa com precisão, mas menos inspirada do que em “Vidas Passadas”. Ao trocar o tempo suspenso do reencontro por uma Nova York que respira capitalismo e cartilha emocional, Song desmonta os clichês de comédias românticas sem a menor intenção de substituí-los por catarse ou calor. Aqui, o amor não é flor que nasce no asfalto. É produto de vitrine, mercadoria negociada a frio.

Se o título da obra provoca ironia imediata, Amores Materialistas, como se a cineasta jogasse ao público um dilema moral embrulhado em celofane, o filme logo revela sua real proposta: não se trata de zombar das comédias rom-coms dos anos 1990, mas sim de usá-las para uma reflexão adulta. A protagonista Lucy, interpretada péssima Dakota Johnson, é uma casamenteira que enxerga o amor como um ativo de mercado. Altura, cor dos olhos, saldo bancário: tudo entra na equação. Ela gerencia uma agência que transforma carências em negócio e desejos em algoritmos.

Crítica | Amores Materialistas: O amor no banco dos réus do capitalismo
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Ao redor dela estão dois homens que também funcionam mais como arquétipos do que como pessoas reais. Pedro Pascal interpreta Harry, o milionário encantador e carismático que oferece a estabilidade de uma vida de luxo. Já Chris Evans é John, o ex-namorado falido, idealista e desajeitado que representa o afeto genuíno e as dores do passado. O triângulo amoroso poderia render bons embates emocionais – mas Song não quer calor. Ela quer contraste. Entre o que parece seguro e o que parece verdadeiro. A ironia é que nem segurança, nem verdade emergem dessas relações, porque a direção está tão ocupada em manter tudo sob controle que esquece de permitir que os personagens simplesmente sintam.

A fotografia de Shabier Kirchner reforça essa lógica da distância emocional. As composições visuais capturam a cidade de Nova York como um organismo estéril e quase protocolar. As sacadas e calçadas emolduram personagens que parecem existir mais como engrenagens do que como pessoas reais. O design de produção acompanha esse raciocínio, tudo é bonito, simétrico, bem vestido – mas vazio. A estética da cidade é tratada como símbolo de um estilo de vida que, embora vendável, esconde uma lógica de solidão e transações afetivas.

A montagem do filme também contribui para a sensação de estagnação. O ritmo arrastado, pontuado por pausas excessivas e diálogos que parecem ensaios acadêmicos sobre afeto e consumo, transforma cenas potencialmente potentes em momentos de dispersão. O flashback de Lucy com John, por exemplo, deveria ser o coração do filme – mas soa deslocado e sem impacto. A falta de química entre Johnson e seus dois interesses amorosos é gritante, e embora isso possa ser parte da proposta, também é um risco mal calculado. Um filme pode ser frio, mas não pode ser vazio.

A escolha por esse tom sóbrio pode frustrar o espectador que esperava encontrar aqui uma versão moderna de “O Casamento do Meu Melhor Amigo” ou “Simplesmente Amor”. O marketing, é verdade, induziu parte do público ao erro. No entanto, o filme parece interessado justamente nesse embate entre expectativa e realidade. Não há lugar para declarações apaixonadas nem para corridas no aeroporto. No universo de Amores Materialistas, quem ama sem garantias está fadado ao fracasso.

Ao colocar Lucy como protagonista, Celine Song escolhe uma personagem que, além de ser racional ao extremo, é emocionalmente árida. Johnson entrega uma atuação que pode ser lida como “fria demais” ou “desinteressada”, mas que talvez dialogue com a própria proposta do filme. O problema é que, mesmo com essa leitura em mente, sua performance nunca transcende. Há uma diferença entre interpretar o vazio e apenas parecer entediada – e é nesse ponto que a atriz parece deixar o filme na mão. Fica difícil torcer por Lucy, ou mesmo compreendê-la, quando sua presença em cena raramente comunica algo além de cansaço.

O trio masculino também sofre com o roteiro indeciso. Pascal não encontra profundidade em Harry, que mais parece um símbolo de estabilidade do que um ser humano. Já Chris Evans, esforçado em escapar da sombra do Capitão América, entrega o que pode com um personagem que carece de nuances. John é uma figura construída para representar a “autenticidade sem dinheiro”, mas que nunca ganha espaço para crescer. Quando o filme ensaia fazê-lo, já é tarde demais.

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Ainda assim, nem tudo se perde. A relação de Lucy com outras mulheres – especialmente com uma de suas clientes, Sophie (Zoe Winters) – é onde o filme parece se encontrar. Há ali uma conexão genuína, que escapa da lógica transacional e aponta para algo mais sensível. São cenas discretas, quase silenciosas, mas que dizem muito. Talvez porque não há desejo de posse, status ou segurança nesse tipo de vínculo. Ali, o afeto é mais leve, mais honesto.

Amores Materialistas não é nem comédia, nem romance, e só parcialmente drama. É uma fábula moderna sobre como as relações afetivas se tornaram mais uma engrenagem do grande motor capitalista. É sobre a solidão calculada. Sobre a dificuldade de amar num mundo que transforma tudo em valor de troca. E talvez, por isso, a ausência de grandes momentos emocionais não seja uma falha, mas um sintoma. Se o amor virou um negócio, o que nos resta é assistir, meio entediados, à sua lenta burocratização.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.