Crítica | Aquela Sensação que o Tempo de Fazer Algo Passou e as feridas abertas de uma millennial
(Foto: Synapse Distribution/Divulgação)

Crítica | Aquela Sensação que o Tempo de Fazer Algo Passou e as feridas abertas de uma millennial

Dirigido, escrito, editado e estrelado por Joanna Arnow, a estreante se expõe de forma impressionante nessa dramédia que mistura ficção e o real.

Aquela Sensação que o Tempo de Fazer Algo Passou marca a audaciosamente crua, reveladora e dolorosamente engraçada estreia de Joanna Arnow, uma cineasta e escritora de quadrinhos americana, que anteriormente se filmou nos curtas-metragens ousadamente experimentais “i hate myself :)” e “Bad at Dancing”. De todos os filmes que este crítico este ano, o longa de Arnow tem, sem dúvida, o título mais difícil de lembrar e também parece mais como a chegada de uma voz totalmente única e plenamente formada; é o filme que mais cristaliza seu título.

Como atriz principal, roteirista, diretora e editora de seu próprio estilo confrontacional e constrangedor de autoficção, Arnow se expõe de várias maneiras. Para Ann, uma mulher de trinta e poucos anos, que navega em um relacionamento casual de BDSM de longa data, um emprego corporativo de baixo nível e interações angustiantes com seus pais dominadores, a sua vida é uma submissão interminável. Mas através da performance de Arnow como Ann, que exige dela um grau incomum de vulnerabilidade física em tela — dada a propensão de Ann pela degradação sexual e uma constante apatia emocional, refletindo o tédio da existência diária de Ann — uma personalidade começa a emergir. Ann é espirituosa e cheia de opiniões, embora limitada pelo caminho que sua vida tomou; tudo o que ela consegue fazer é suportar as reuniões intermináveis sobre assuntos de nenhum valor e aderir obedientemente às demandas sexuais repetitivas e egoístas de seu parceiro de BDSM, um homem mais velho e desinteressado (Scott Cohen) que nunca se lembrará de que já perguntou onde Ann fez faculdade.

Crítica | Aquela Sensação que o Tempo de Fazer Algo Passou e as feridas abertas de uma millennial
(Foto: Synapse Distribution/Divulgação)

O senso de humor seco de Arnow está focado nessa banalidade de ser, no senso de mundanidade que subjaz ao mal-estar millennial. Mas também documenta o progresso incremental dos relacionamentos de Ann com os homens com a mesma impassividade mordaz. Lentamente, Ann embarca em novos relacionamentos, assume outros amantes e descobre fontes inesperadas de conexão, mesmo enquanto busca destilar o que a atrai em suas dinâmicas passadas em algo confortavelmente seu. O título do filme fala de um senso de pavor dolorosamente relacionável, um medo de envelhecer e se arrepender que não tem outra resposta a não ser a aceitação.

É assim que sua personagem sai, e se houver algum elemento de autobiografia em jogo aqui — que presumivelmente tem, considerando que seus pais co-estrelam como eles mesmos — então a cineasta deve estar se saindo um pouco também. É um testemunho da habilidade com a qual Arnow manipula o tom que isso aparece como apenas mais uma nuance no espectro das emoções desconfortáveis do filme, em vez de uma imposição assustadora.

Aquela Sensação que o Tempo de Fazer Algo Passou é um filme estruturado elipticamente como uma série de vinhetas tipo esquetes a edição do filme lhe confere uma característica moderna única, evocando a sensação de rolar por um feed do Instagram ou assistir a uma sequência de clipes no Tiktok. Consistentemente, porém, o filme é unificado pelo registro plano e sem emoção em que seus diálogos são entregues, o que destaca a a ausência de valor existencial de uma conversa após outra, e pelo rigor formal da cinematografia de Arnow, que mantém a câmera estática, o enquadramento artisticamente arranjado e o ritmo uniformemente lento.

Embora os cenários deste filme sejam assustadoramente realistas — esta é a representação mais verdadeira do BDSM que eu já vi em um filme —, os diálogos são escritos para serem mais constrangedores e estilizados do que a maneira como uma pessoa fala na vida real. Isso pode ser chocante às vezes, mas parece ser uma escolha estilística deliberada, na medida em que Arnow está se distanciando do material por meio de sua entrega e trocas dolorosas, ao mesmo tempo em que expõe as partes mais sensíveis de si mesma na tela. Esse é um filme cuja a cena em que a protagonista canta passagens de “Os Miseráveis” é o momento mais vulnerável dela, mesmo essa sendo uma obra que também apresenta extensos momentos com nudez frontal.

Crítica | Aquela Sensação que o Tempo de Fazer Algo Passou e as feridas abertas de uma millennial
(Foto: Synapse Distribution/Divulgação)

Essa mistura de algo documental, mas que a todo momento lembra que é uma ficção lembra bastante a estrutura dos roteiros que Fernanda Young fez em toda sua carreira, sobretudo em “Os Normais”, que embora fosse pensado como uma comédia de cunho adulto, o principal poder argumentativo da brasileira era de dialogar com a banalidade. De forma ainda mais crua e com outras referências culturais. Não é atoa que o filme de estreia de Arnow fez um grande sucesso em festivais, porque sou mais um crítico me importando com sua vidinha de merda de Ann.

Mas onde Aquela Sensação que o Tempo de Fazer Algo Passou é mais impressionante, de maneira surpreendente, é que essa angústia se transforma em algo mais esperançoso. É um sentimento semelhante a acordar uma manhã após um episódio depressivo com a vontade de escovar os dentes e encarar o mundo mais uma vez. Ann é uma pessoa passiva e egocêntrica. Se coisas boas podem melhorar na vida dela, talvez haja esperança para o resto de nós também.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.