Crítica | Asa Branca até faz um movimento ousado, mas é mais uma cinebiografia acomodada
Paris Filmes/Divulgação

Crítica | Asa Branca até faz um movimento ousado, mas é mais uma cinebiografia acomodada

A cinebiografia é um gênero perigosamente sedutor. Promete desvendar a essência de uma personalidade, mapear os caminhos sinuosos entre o pessoal e o mito, e, no processo, entregar ao espectador não apenas uma história, mas uma explicação. Asa Branca: A Voz da Arena, dirigido por Guga Sander e centrado na vida do locutor de rodeios Waldemar Ruy dos Santos, aceita esse desafio com uma ambição notável, considerando suas evidentes limitações orçamentárias. No entanto, o filme constrói uma jornada marcada por uma dualidade intrigante e, por vezes, frustrante: a de uma abertura audaciosa que rapidamente se dissolve em uma narrativa excessivamente segura e convencional.

Desde os primeiros momentos, Sander demonstra um instinto visual interessante. A escolha de iniciar a narrativa com o acidente que aposentou Asa Branca como peão é mais do que uma estratégia cronológica invertida; é uma declaração de tom. A cena é filmada como um pesadelo febril, onde os touros, capturados em closes angustiantes e luzes expressionistas, transcendem a condição de animais para se tornarem figuras mitológicas, monstros de uma arena. Essa sequência promissora, sugerindo que teremos acesso à psicologia do personagem por meio de uma linguagem visual subjetiva e arriscada. É uma porta de entrada poderosa para um universo de demônios internos e adrenalina pura.

Contudo, essa porta se fecha quase imediatamente. Após o prólogo impactante, A Voz da Arena se acomoda confortavelmente nos trilhos bem desgastados da cinebiografia tradicional. A narrativa assume uma linearidade previsível: um novo talento (a narração), a ascensão meteórica nos anos 90, os excessos do sucesso – com o alcoolismo e as drogas pintados com pinceladas genéricas –, a queda inevitável e, por fim, a busca pela redenção e o reencontro com um amor do passado. Essa estrutura, por si, não é um pecado. O problema reside na execução, que carece de profundidade e de um ponto de vista mais incisivo sobre o material.

O filme apresenta os fatos, como um documentário superficial, mas hesita em mergulhar nas contradições e complexidades de seu protagonista. A revolução que Asa Branca promoveu nos rodeios, transformando as narrações em espetáculos pirotécnicos e hiperbólicos, é mais afirmada pelos personagens do que visceralmente sentida pelo espectador. A arena, que deveria ser o palco de sua glória e de sua perdição, nunca ganha a dimensão de personagem. As cenas de rodeio são esparsas e, compreensivelmente pela verba, desprovidas da grandiosidade caótica que o próprio locutor ajudou a criar. Isso cria uma desconexão fundamental: ouvimos sobre o fenômeno, mas não o experimentamos cinematograficamente. A paixão pelo esporte, o elo visceral com a poeira, o suor e o risco, fica restrita ao discurso, nunca transborda para a tela.

Essa falta de ousadia narrativa se reflete também nas relações humanas centrais. O roteiro demora a estabelecer conexões sólidas entre os personagens, só encontrando um ritmo mais orgânico após o retorno de Asa Branca de sua viagem aos Estados Unidos. Felipe Simas, no papel-título, tem momentos de genuíno carisma e outros de evidente esforço, onde a tentativa de capturar a explosividade do locutor beira a caricatura. A química mais interessante e crível é, paradoxalmente, a que ele estabelece com Camila Brandão, que interpreta Jiboia. Brandão consegue escapar do arquétipo fácil da “roqueira dura” e infunde em sua personagem uma autenticidade que brilha em meio a um elenco funcional. Em contraste, o relacionamento com Sandra, sua esposa (Lara Tremouroux), definha na tela, sem faísca, conflito ou afeto palpável, não por culpa dos atores, mas pelas escolhas narrativas, tornando seus dramas conjugais meros pontos obrigatórios no roteiro.

A trilha sonora é outro elemento que sintetiza o conservadorismo do projeto. Para um filme sobre um homem que bebeu da cultura rock para revolucionar um esporte rural, a seleção musical soa surpreendentemente genérica e desconectada. O hard rock escolhido parece emergir de um catálogo de “música de tensão genérica”, sem dialogar de forma criativa ou emocional com a trajetória do personagem. É um sintoma de uma abordagem que, talvez por cautela ou falta de recursos, opta pelo caminho mais seguro em detrimento de uma identidade sonora mais ousada e personalizada.

Asa Branca: A Voz da Arena é, portanto, um filme de contradições. Ele nasce de uma cena inicial que promete um mergulho psicológico ousado e termina como uma história de superação bastante convencional. Sander demonstra competência em contar uma história coesa e em apresentar os altos e baixos de Waldemar sem julgamentos, honrando sua memória dignamente. No entanto, a obra peca por não ir além da superfície, por não traduzir em linguagem cinematográfica a inventividade e o espetáculo que seu biografado representou. É um filme que entretém honestamente por algumas horas, cumpre seu papel básico de cinebiografia, mas deixa a sensação de que a voz da arena, tão única e explosiva, merecia um eco muito mais reverberante e menos contido na tela. No fim, é uma narrativa sobre um furacão, contada com a segurança de uma brisa controlada.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.