Foi em 2018, durante o Festival Se Rasgum, em Belém, que conheci Getúlio Abelha. Na época, ele tinha apenas um single lançado, mas já chamava atenção pela ousadia de seu forró eletrônico debochado. Lembro-me de assistir àquela performance cheia de energia caótica e pensar: “Esse cara vai longe”. Sete anos depois, após sua mudança para São Paulo e a consolidação de uma carreira que transita entre música, teatro e performances visuais, Getúlio lança Autópsia, um EP que confirma que não só foi longe, mas está disposto a ir ainda mais além.
Autópsia não tem medo de se reinventar. Se em Marmota (2021) — que já classifiquei como um dos melhores discos no ano de seu lançamento — o artista explorava um forró-brega perturbador e cheio de deboche, aqui ele mergulha em águas mais profundas e turbulentas. O EP é uma autêntica autópsia artística: uma investigação íntima e visceral de quem Getúlio Abelha foi, é e pode vir a ser.
A produção musical, assinada por Glhrmee em parceria com o próprio Getúlio, é um dos pontos altos do disco. Cada faixa é uma surpresa sonora, uma mistura de gêneros que vai do forró ao dubstep, passando por bolero, nu metal e funk. A abertura do EP, “Freak”, já dá o tom do que está por vir: um forró eletrônico distorcido e pesado, com letras em inglês que falam de solidão e autoaceitação. A batida pulsante e os vocais carregados de emoção fazem dessa faixa um hino outsider, perfeito para quem já se sentiu deslocado em algum momento da vida.
Mas é em “Engulo ou Cuspo”, com participação do trio paulistano Katy da Voz e as Abusadas, que o EP atinge seu ápice de ousadia. A música é um soco no estômago: um mix de forró, reggaeton e funk que narra, sem filtros, uma cena de sexo oral casual. O refrão, cantado como se houvesse um pênis na boca, é tão provocativo quanto genial. E é justamente essa capacidade de chocar que faz de Getúlio Abelha um dos artistas mais radicais da cena independente brasileira hoje — botando muita banda de rock no chinelo.
Outro destaque é “Toda Semana”, uma mistura inesperada de forró com… nu metal (?). A canção é embalada, a todo momento por um riff de guitarra que lembra bandas desse movimento do início dos anos 2000, sobretudo, o Deftones. A letra fala de ciclos repetitivos e da busca por conexão em uma cidade grande como São Paulo, tema que permeia todo o disco. A produção aqui é impecável, com camadas de sintetizadores, guitarras distorcidas e uma base rítmica que convida ao movimento.
Já “Armação” traz o piseiro para o centro, com sanfona e metais que remetem ao Nordeste, mas sem perder a pegada eletrônica e experimental. E “Zezo”, faixa que homenageia o “Príncipe dos Teclados” do Rio Grande do Norte, é uma viagem nostálgica pelo brega dos anos 80, com direito a referências à clássica “Prometemos não chorar”, de Barros de Alencar.
O conceito visual do EP também merece destaque. Cada faixa ganhou um visualizer no YouTube, com uma estética sombria e debochada que dialoga perfeitamente com a capa do disco. O clipe de Freak, em particular, é uma obra de arte à parte, traduzindo em imagens a atmosfera teatral e introspectiva que permeia o álbum.
Assisti ao último show de Getúlio Abelha e posso dizer que a energia dele ao vivo é ainda mais contagiante do que nos discos. No palco, ele é um furacão: dança, atua, interage com o público e transforma cada música em uma experiência única. Autópsia, em sua versão ao vivo, ganha novas cores e camadas, graças a uma produção impecável que inclui um talentoso balé e performances teatrais.

Claro, essa autópsia não é perfeita. Em alguns raros momentos, a experimentação sonora parece excessiva, como se Getúlio estivesse tentando abraçar todos os gêneros possíveis em apenas cinco faixas. Armação, por exemplo, poderia ser mais enxuta, sem perder sua essência. Mas esses são detalhes que não comprometem a força do EP como um todo.
Autópsia é um trabalho sobre morte e renascimento, de solidão e conexão, de caos e beleza. Para um migrante — como quem vos escreve — que vive intensamente São Paulo, tudo isso soa muito familiar. O EP é um retrato de um artista em constante transformação, que não tem medo de se expor e de explorar novos caminhos. E, acima de tudo, é uma prova de que a cena independente brasileira está viva, pulsante e cheia de talentos que merecem ser ouvidos.
Getúlio Abelha pode não ser um nome mainstream (ainda), mas sua música é tão necessária quanto urgente. E, depois de Autópsia, fica claro que ele não vai parar por aqui. Como ele mesmo diz em Freak: “I’m a freak, but I’m free”. E é essa liberdade que faz dele um dos artistas mais fascinantes da atualidade.
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