Há um momento em toda obra criativa longeva em que a autoparódia se torna inevitável. Para Black Mirror, série que já redefiniu o que a ficção científica televisiva poderia ser, esse momento chegou com estrondo no episódio de estreia da 7ª temporada. “Pessoas Comuns” não é apenas ruim — é constrangedor. É o tipo de fracasso que faz o espectador questionar se Charlie Brooker, outrora um dos escritores mais perspicazes da televisão, perdeu completamente o contato com o que tornou sua criação relevante. Pior: é um episódio que parece escrito por um algoritmo da Netflix, aquele mesmo que a série costumava satirizar com elegância.
A premissa, em teoria, é digna de Black Mirror. Um casal comum, Amanda (Rashida Jones) e Mike (Chris O’Dowd), enfrenta a brutalidade do capitalismo tardio quando um tumor cerebral a joga nos braços de uma empresa que “salva” cérebros em nuvem — por uma mensalidade, claro. O paralelo com planos de saúde extorsivos e a monetização da vida humana é óbvio, mas não necessariamente ruim. O problema é que o episódio trata seu tema com a sutileza de um martelada na testa. A Rivermind, a empresa por trás do serviço, não é uma distopia crível — é uma caricatura de vilã corporativa. Tracee Ellis Ross, atriz capaz de nuances brilhantes, é reduzida a um estereótipo vazio, como se o roteiro tivesse sido escrito por um estagiário que acabou de assistir “A Rede Social” pela primeira vez.

O tom, sempre uma das grandes forças da série, aqui é uma bagunça indecifrável. Black Mirror já equilibrou humor sombrio e horror existencial com maestria — veja “Natal”, onde um assistente virtual é torturado por séculos em um limbo digital, ou “Odiados pela Nação”, que transforma abelhas robóticas em armas de assassinato em massa. Mas Pessoas Comuns oscila entre a comédia pastelão (Amanda vomitando anúncios de lubrificante durante o sexo) e o drama miserabilista (Mike se humilhando no Dum Dummies) sem conseguir ser convincente em nenhum dos dois. As cenas de humor são tão amplas que parecem saídas de “Brooklyn Nine-Nine”, enquanto as supostamente trágicas são tão previsíveis que nem Rashida Jones consegue salvá-las.
Falando em Dum Dummies, eis talvez o maior sintoma da decadência criativa do episódio. A ideia de um site onde pessoas pagam para ver outras se automutilar não é, em si, ruim—Black Mirror já explorou o voyeurismo digital com brutal eficiência em “Cala a Boca e Dance” e “Urso Branco”. Mas aqui, a crítica se resume a “a internet é horrível”, como se estivéssemos em 2012. Não há análise, não há ironia, só a repetição cansada de um clichê que já foi novo quando a série nasceu. Mas passaram-se quase 15 anos. Para piorar, a subtrama do Dum Dummies não conversa com o resto do episódio. Enquanto a Rivermind representa o capitalismo predatório, o site é só… crueldade gratuita. Não há conexão temática, apenas a lógica preguiçosa de “vamos jogar mais uma coisa perturbadora na tela”.
A direção de Ally Pankiw, que também comandou o medíocre “Joan É Péssima”, não ajuda. As cenas na pousada Juniper, onde o casal passa seus aniversários, são iluminadas como um comercial de resort barato, sem a ironia visual que poderia justificar a escolha. Os momentos supostamente tensos — como Amanda saindo da zona de cobertura e começando a espumar anúncios — são filmados com a urgência de uma cena de “The Office”, mas sem o timing cômico necessário. Até a trilha sonora, outrora um destaque da série, aqui é genérica, como se tivesse sido escolhida por um bot do Spotify.

E então chegamos ao final, aquele momento em que um bom episódio de Black Mirror costuma desferir seu golpe mortal. Em Pessoas Normais, porém, a conclusão é tão inevitável que chega a ser entediante. Mike, falido e esgotado, mata Amanda para libertá-la do pesadelo em que se transformou sua vida — e depois volta ao Dum Dummies, porque, vejam só, o sistema é ruim. Não há surpresa, não há impacto, só a confirmação de que os roteiristas não tinham nada de interessante a dizer. Comparado ao final ambíguo de “San Junipero”, ao terror existencial de “Playtest“ ou até à frieza calculista de “Crocodilo”, esse desfecho é tão profundo quanto um tweet.
O que torna Pessoas Normais especialmente frustrante é que ele não é apenas ruim — é sintomático. Sintomático de uma série que, outrora aclamada por sua originalidade, agora repete fórmulas gastas. Sintomático de uma Netflix que transformou Black Mirror em uma máquina de conteúdo, onde quantidade claramente supera qualidade. E, acima de tudo, sintomático de um criador que parece ter perdido a fé em sua própria obra. Charlie Brooker já nos deu episódios que desafiaram, perturbaram e até emocionaram. Mas Pessoas Normais só mais um produto — vazio, calculado e, no fim das contas, esquecível.
Se há uma lição a ser tirada dessa estreia desastrosa, é que talvez seja hora de desligar o espelho. Antes que ele mostre algo pior do que já refletiu.
Todas as sete temporadas de Black Mirror estão disponíveis na Netflix.
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