Crítica | Black Mirror - 7x2: A fragilidade da verdade em tempos de manipulação
Netflix/Divulgação

Crítica | Black Mirror – 7×2: A fragilidade da verdade em tempos de manipulação

Há histórias que nos cutucam com perguntas incômodas: até onde podemos confiar no que lembramos? E se alguém pudesse reescrever nossa realidade como quem edita um documento digital? Black Mirror, desde seus primeiros episódios, brinca com esses temores modernos, mas em “Bête Noire”, segundo episódio da 7ª temporada, a série tenta um malabarismo ambicioso — e quase cai no próprio vazio narrativo. A trama, que gira em torno de Maria (Siena Kelly), uma mulher cuja vida desmorona quando uma antiga colega a convence de que suas memórias são falsas, poderia ser um estudo brilhante sobre gaslighting na era pós-digital. Acaba, porém, perdida em seus próprios truques, como um mágico que se encanta mais com seus artifícios do que com o público.

A direção de Toby Haynes é, sem dúvida, o ponto alto. Ele cria uma atmosfera de paranoia quase palpável: planos fechados no rosto de Maria, como se a câmera também duvidasse dela; sombras que se esticam em paredes vazias, sugerindo ameaças invisíveis; e uma trilha sonora que não se contenta em ambientar — ela ataca, com graves distorcidos que surgem como facadas sonoras. Tecnicamente, é Black Mirror no seu melhor: polido, claustrofóbico, cheio de recursos que deveriam servir a uma narrativa afiada. O problema é que, aqui, a forma não encontra conteúdo. A técnica é um vestido de grife num manequim sem vida.

Maria, como protagonista, é mais um conceito do que uma pessoa. Sua angústia é visível — Kelly suando em close-ups intermináveis —, mas falta profundidade. Ela é um saco de pancadas emocional, reagindo a cada golpe sem que o espectador tenha algo para se apegar além de uma vaga empatia. Verity (Rosy McEwen), a antagonista, é ainda mais problemática. Sua maldade parece existir porque o roteiro exige, não porque o mundo construído justifique.

Há uma cena emblemática nessa desconexão: o debate sobre se um restaurante se chama “Bernie’s” ou “Barney’s”. Era para ser o momento em que o chão some sob os pés de Maria, mas a construção é tão artificial que parece um exercício de roteiro, não um drama orgânico. Pior: quando descobrimos que há versões diferentes do episódio com detalhes alterados (em uma, o nome é Bernie’s; em outra, Barney’s), a revelação soa como um truque vazio do serviço de streamingBlack Mirror parece acreditar que confundir é o mesmo que envolver.

E aqui reside a grande frustração. O episódio tem todas as ferramentas para explorar temas urgentes — gaslighting racial, cancelamento como arma, a fragilidade da memória em tempos de desinformação —, mas os trata como pano de fundo para reviravoltas. Maria é uma mulher negra cuja palavra é sistematicamente questionada; Verity, branca, usa seu privilégio para distorcer fatos. Há, nisso, uma metáfora potente sobre como a realidade de minorias é constantemente posta em cheque por narrativas dominantes. Mas a série não mergulha nisso. A raça parece um acidente de cenário, não um eixo narrativo. O cancelamento, outro tema tangenciado, vira apenas mote para drama, sem crítica substantiva sobre como a cultura da denúncia pode ser instrumentalizada.

A guinada para a ficção científica no terceiro ato — com Verity usando um dispositivo quântico para manipular a realidade — é onde o episódio perde até os fãs mais indulgentes. A ideia, por si só, não é ruim. Afinal, Black Mirror já nos acostumou a tecnologias distópicas. O problema é a execução. O pingente que altera memórias coletivas surge ex-machina, sem regras claras, e a narrativa pula de um drama psicológico para um conflito quase sobrenatural sem preparar o terreno. A direção, antes precisa, agora recorre a jump scares baratos, e as atuações, antes contidas, viram caricaturas. McEwen, que até então equilibrava frieza e vulnerabilidade, vira uma vilã de filme B, com falas que beiram o risível (“Imperatriz do universo”, alguém?).

E no entanto… há algo que ressoa. Talvez seja o medo ancestral de não poder confiar nem em si mesmo. Ou a suspeita de que, num mundo de deepfakes e revisionismos históricos, a verdade seja mesmo uma questão de consenso, não de fato. Bête Noire acerta quando mostra como a tecnologia não cria nossos monstros — apenas dá novas formas aos que já carregamos. Maria, no final, pega o pingente e assume o papel de manipuladora. É um final ambíguo, mas revelador: a vítima vira algoz, o oprimido vira opressor. O episódio, mesmo tropeçando, lembra que o verdadeiro black mirror não é a tela do celular, mas o reflexo que evitamos encarar.

Todas as sete temporadas de Black Mirror estão disponíveis na Netflix.

Leia as críticas dos outros episódios da temporada:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.