Crítica | Black Mirror- 7x3: Hotel Reverie mostra quando a nostalgia vira prisão afetiva
Netflix/Divulgação

Crítica | Black Mirror – 7×3: Hotel Reverie mostra quando a nostalgia vira prisão afetiva

Black Mirror é uma série que construiu sua fama espetando nosso vício tecnológico com doses generosas de distopia, mas de vez em quando, presentear o público com histórias que doem de outro jeito. Não pela crueldade, mas pela ternura. Se em “San Junipero” a narrativa nos levou a um paraíso digital onde o amor desafiava a morte, em “Hotel Reverie” — o terceiro episódio da 7ª temporada — a série revisita esse território com menos inovação, mas com igual sensibilidade. Desta vez, o tema não é a eternidade, e sim a nostalgia — e como ela pode ser reinventada quando colocada nas mãos (ou nos algoritmos) certos.

Comparado aos dois episódios anteriores desta temporada Hotel Reverie é um alívio. Não que falte crítica social aqui: a trama gira em torno de Brandy Friday (Issa Rae), uma atriz negra condenada a papéis secundários em Hollywood, que vê numa tecnologia chamada Redream a chance de roubar a cena em um clássico dos anos 1940.

A premissa, à primeira vista, lembra “Pleasantville – A Vida em Preto e Branco” (1998) ou “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985), mas com um twist “blackmirroriano”: o filme dentro do filme é um ambiente controlado por Inteligência Artificial (IA), onde os personagens do passado agem como se fossem reais, mas seguem um roteiro pré-determinado. Até que, claro, tudo dá errado.

O que poderia ser apenas uma metáfora sobre representatividade (Brandy assume um papel originalmente de um homem branco) ganha camadas graças à direção de Haolu Wang, que opta por uma estética deliberadamente teatral. As cenas dentro do filme Hotel Reverie são banhadas em luz dourada, com closes que lembram o melodrama clássico, enquanto o “mundo real” — um estúdio cheio de cabos e monitores — é filmado com cores mais frias. A escolha não é só estética: reforça a ideia de que, para Brandy, a fantasia é mais vívida que sua própria carreira estagnada.

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A sacada do roteiro está em como a falha tecnológica — um café derramado em um servidor, porque até o apocalipse começa com um descuido — transforma o episódio em algo maior. Quando o sistema trava, Brandy fica presa na simulação, onde o tempo passa mais rápido: minutos no exterior viram meses dentro do filme. É aí que a química entre Rae e Emma Corrin (como Dorothy, a estrela original do filme) floresce. Os diálogos, inicialmente cheios de frases ensaiadas e gestos calculados, gradualmente dão lugar a conversas sinceras, cheias de hesitações e olhares prolongados.

Curiosamente, a narrativa lembra certos episódios de “Doctor Who” — outra série que estou escrevendo a cada novo episódio lançado —, especialmente aqueles em que o Doutor e sua companheira acabam presas em realidades alternativas que distorcem o tempo (pense naquela cenário dos anos 60 sem música de “O Som do Diabo”). A diferença é que, aqui, a ficção científica serve menos a um enredo de aventura e mais a uma reflexão sobre como o amor pode surgir nos lugares mais inesperados — até mesmo num programa de computador que imita os anos 1940.

Um dos méritos do episódio é não subestimar o público. Em vez de explicar didaticamente as regras do Redream, a narrativa deixa que o espectador as descubra junto com Brandy. Quando ela comete um erro e desvia do script original, a reação dos outros personagens — inicialmente confusos, depois adaptativos — é quase uma metáfora para como a indústria do entretenimento lida com mudanças: primeiro resiste, depois assimila.

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A trilha sonora, repleta de jazz e orquestrações suaves, também merece destaque. As músicas não só ambientam a era retratada, mas funcionam como pistas emocionais. Em uma cena particularmente bela, Brandy e Dorothy dançam ao som de uma melodia que, fora da simulação, já terminou há segundos. É um momento que encapsula a tragédia do romance: elas estão vivendo algo que, para o mundo real, é efêmero.

O desfecho de Hotel Reverie é menos sobre “vencer o sistema” e mais sobre aceitar que algumas histórias têm hora para acabar. É aqui que esse episódio se diferencia do seu “irmão” San Junipero: enquanto o primeiro episódio celebrava a eternidade digital, este reconhece que a beleza do amor está, em parte, em sua fugacidade. Brandy não pode ficar para sempre no passado, mas o tempo que teve com Dorothy a transforma — e, de quebra, devolve a ela uma agência que Hollywood sempre negou.

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Não é um episódio perfeito. Algumas subtramas — como a equipe de produção tentando consertar o Redream — poderiam ter sido mais exploradas, o despercídio da personagem nada desenvolvida da Awkwafina e o ritmo oscila em certos momentos. Mas essas falhas são menores diante do que o episódio acerta: uma história que, em meio a tantas distopias, lembra que a tecnologia também pode ser um lugar de encontro.

Hotel Reverie não supera San Junipero — e talvez nem queira. Em vez de replicar a grandiosidade daquele conto, ele oferece algo mais íntimo: a certeza de que, mesmo num mundo cada vez mais digitalizado, ainda há espaço para histórias que nos fazem sorrir e suspirar.

Todas as sete temporadas de Black Mirror estão disponíveis na Netflix.

Leia as críticas dos outros episódios da temporada:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.