Há algo de irônico em uma série que, em suas origens, se propôs a desmontar nossa relação doentia com a tecnologia acabar refém justamente do que mais criticava: a repetição vazia, a nostalgia como muleta e a incapacidade de surpreender. A 7ª temporada de Black Mirror chega como um espelho embaçado — ainda capaz de refletir alguns lampejos de brilho, mas tão manchado por suas próprias marcas que já não consegue mostrar algo realmente novo.
Charlie Brooker, em seus melhores dias, era como um profeta sarcástico do apocalipse digital. Seus episódios eram facadas precisas, seja no voyeurismo midiático (“O Hino Nacional”), comentário criativo e perspicaz sobre como funcionam algoritmos de sites de relacionamento (“Hang the DJ”) ou como a meritocracia é uma falácia e até mesmo a revolta mantém a máquina girando (“Quinze Milhões de Méritos”). Havia ali uma urgência, uma raiva contida que transformava cada história num alerta ou riso de nervoso. Agora, porém, a série parece cansada. Não da tecnologia — mas de si mesma.
Quando a crítica vira paródia
Dois episódios desta temporada são tão ruins que chegam a ser curiosidades patéticas. “Pessoas Comuns” tenta criticar a lógica desumana das plataformas de streaming — a mesma Netflix que o exibe —, mas o faz com a sutileza de um martelada na testa. A trama, sobre um homem que aceita humilhações para manter a esposa viva em um serviço de saúde premium, é tão exagerada que beira o nonsense. Se fosse um curta-metragem absurdo, talvez funcionasse como sátira. Mas Black Mirror insiste em um tom dramático, e o resultado é constrangedor. Brooker, que já escreveu diálogos afiados, certamente esconderia o rosto de vergonha ao ver esse roteiro batido sendo levado a sério.
Já “Bête Noire” é um festival de decisões ruins. A protagonista Maria, vítima de gaslighting por uma ex-colega, é tão pouco cativante que é difícil sentir empatia — e pior, o episódio acelera de forma tão brusca que nenhuma das ideias (inclusive uma crítica mal-executada ao cancelamento) tem tempo para respirar. A direção tenta salvar a história com closes desconfortáveis e uma fotografia opressiva, mas não adianta: quando os personagens são rasos e as reviravoltas, previsíveis, nem o melhor jump scare de som grave consegue disfarçar o vazio.
Mas nem tudo está perdido. Os melhores momentos da temporada vêm justamente quando Black Mirror para de gritar “tecnologia é perigosa!” e permite que ela seja, simplesmente, humana. “Hotel Reverie” é um desses raros casos em que a série lembra que por trás de toda inovação há pessoas — e seus desejos, medos e contradições. O episódio acompanha Brandy (Issa Rae) e Dorothy (Emma Corrin), duas mulheres de épocas diferentes que se apaixonam dentro de uma simulação cinematográfica. A direção de fotografia aqui é delicada: tons pastéis e luzes difusas criam um ambiente quase onírico, enquanto a trilha sonora, cheia de pianos melancólicos, reforça a doçura e a dor desse romance impossível.
O mesmo acontece em “Eulogy”, um monólogo estendido de Paul Giamatti sobre culpa e arrependimento. O episódio é minimalista — apenas um homem e suas memórias projetadas —, mas funciona porque investe no que Black Mirror muitas vezes esquece: profundidade emocional. A câmera estática, focada no rosto de Giamatti, captura cada microexpressão de dor, enquanto o som ambiente (o tilintar de copos, o vento contra a janela) amplifica a solidão do personagem. É um daqueles raros momentos em que a tecnologia não é vilã nem salvadora, apenas um espelho para o que já carregamos dentro de nós.
O fardo do passado
O problema é que, mesmo quando acerta, a série não consegue escapar de seu próprio legado. Dois episódios — “Brinquedo” e “USS Callister Infinity” — são sequências diretas de histórias passadas. O primeiro retoma o universo de “Bandersnatch” (o filme interativo de 2018) com uma narrativa sobre criação de inteligência artificial, mas peca por uma estrutura cansativa: flashbacks intercalados com um interrogatório que só serve para alongar o que poderia ser uma trama mais enxuta. Já “USS Callister Infinity” é uma surpresa agradável, resgatando o tom space opera da 4ª temporada com um ritmo ágil e efeitos visuais que homenageiam “Star Trek ”sem perder a identidade sombria da série.

Mas eis a questão: por que Black Mirror insiste em olhar para trás? A resposta, talvez, esteja no medo. Medo de não conseguir replicar o impacto dos primeiros anos. Medo de que, em um mundo onde a distopia virou rotina, suas críticas pareçam ingênuas. E, principalmente, medo de que o público já não espere mais nada dela.
O Espelho quebrado (ou Apenas Empoeirado?)
A 7ª temporada de Black Mirror parece como alguém que tenta reassumir um papel que não cabe mais. Alguns momentos — como o silêncio doloroso de “Eulogy” ou o romance impossível de “Hotel Reverie” — mostram que a série ainda pode emocionar. Mas quando tenta chocar, soa forçado; quando tenta repetir, parece cópia.
Talvez o verdadeiro Black Mirror hoje não esteja nas telas, mas no que a série se tornou: um reflexo distorcido de sua própria grandeza passada, insistindo em se olhar no mesmo espelho, mesmo sabendo que a imagem já não é a mesma. E, no fim das contas, quem pode culpá-la? Até os melhores espelhos embaçam com o tempo.

Todas as sete temporadas de Black Mirror estão disponíveis na Netflix.
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