Crítica | Canina: a maternidade, o animalesco e o monótono
SearchlightPictures/Divulgação

Crítica | Canina: late, late, mas não morde

Em um cinema muitas vezes saturado de discursos prontos sobre maternidade, a mais recente obra da diretora Marielle Heller (“O Diário de uma Adolescente”), Canina, tenta arriscar um olhar surreal sobre os desafios dessa experiência, mas acaba esbarrando em um problema central: a falta de equilíbrio entre o bizarro e o real. Com Amy Adams no papel de uma mulher que começa a experimentar transformações misteriosas enquanto lida com os pesares da vida suburbana, o filme flerta com uma proposta ousada, mas nem sempre consegue mantê-la de forma consistente.

A história segue a Mãe (interpretada por Adams), uma mulher que abandonou sua carreira artística para se dedicar à maternidade em tempo integral. Seu marido, que parece ser uma versão idealizada do parceiro suburbano, trabalha o dia inteiro e viaja a negócios, deixando a Mãe a cuidar da casa e do filho sozinha.

O filme, através dessa dinâmica, busca discutir o papel da mulher na sociedade contemporânea, suas frustrações e o conflito entre sua identidade individual e a imposta pela sociedade ao se tornar mãe. Ao longo de sua jornada, ela começa a vivenciar uma transformação física e psicológica que a leva a adotar comportamentos animalescos, inclusive se transformando literalmente em um cachorro durante a noite. Este é o ponto de partida para uma alegoria que, mais do que falar sobre a maternidade, parece tentar abrir um leque de interpretações acerca do patriarcado, das expectativas de classe e do sacrifício pessoal de mulheres brancas, heterossexuais e de classe média alta.

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O filme, então, tenta se comunicar com dois públicos distintos. De um lado, a comédia que parece ser direcionada aos maridos dessas mulheres, com piadas sobre a banalidade da vida suburbana e o estresse do cotidiano. Do outro, uma tentativa de horror psicológico voltado para as mães, mostrando uma maternidade que destrói a identidade e que se torna um fardo. Essa dicotomia não apenas enfraquece a proposta, mas também a transforma em um exercício de falta de autoconsciência, o que, embora necessário para o desenvolvimento de um filme mais ambicioso, nunca é alcançado de forma plena.

Amy Adams, conhecida por sua habilidade em criar personagens com profundidade emocional, se entrega totalmente à Mãe, trazendo uma atuação que, mesmo não sendo prejudicada pela falta de profundidade do roteiro, se vê limitada por um enredo que parece não querer avançar com ela. Ela é uma mulher que está ciente das pressões da maternidade e do desgaste emocional que isso causa, mas o filme a apresenta de maneira bastante unidimensional, como uma personagem que se entrega ao autojulgamento sem nunca realmente questionar o que está acontecendo dentro dela.

Seus monólogos e suas reflexões não levam a nenhuma conclusão, eles apenas compõem um ciclo vicioso de frustração e ressentimento que se reflete nas suas ações e decisões. O desejo de a personagem ser mais do que a mãe que ela é coloca o filme numa encruzilhada, entre o desejo de humanizar a personagem e o uso exagerado de símbolos para representá-la.

O maior erro de Canina reside na tentativa de se transformar em algo metafísico e surrealista, quando sua premissa, por mais interessante que seja, pede por uma abordagem mais realista. Ao explorar a transformação física da protagonista em um cachorro, Heller decide optar por uma metáfora animalesca para tentar explorar a luta interna da mulher contra as expectativas da sociedade e do papel que a maternidade lhe impõe. Mas a alegoria acaba se tornando um recurso vazio, que não só interrompe a narrativa, mas também obscurece o que poderia ser uma análise profunda do que significa ser mulher na sociedade moderna. O fato de a Mãe literalmente se transformar em um animal quase anula qualquer tentativa do filme de tratar com seriedade questões emocionais e existenciais. Mais que isso, as vezes só parece ridículo mesmo, como você pode observar nas imagens abaixo:

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Para além do aspecto narrativo, o filme também peca em sua execução técnica. A direção de arte, cinematografia e até mesmo a escolha da trilha sonora parecem seguir um mesmo padrão: o exagero. Em várias cenas, o uso de cores saturadas e a manipulação excessiva dos ângulos de câmera tornam-se um truque visual, afastando o espectador da empatia com a protagonista. O filme, ao invés de usar cinematografia para acentuar o impacto emocional da história, tenta, de forma forçada, captar a atenção do público com seus recursos visuais, que acabam se tornando um tanto autossuficientes.

Mas é bom reforçar que a culpa dessa obra desconjuntada se dá pela abordagem. Vale lembrar que um dos grandes hits do ano passado, “A Substância”, é uma fantasia que usava do horror corporal para criar uma obra que criticava a indústria, a sociedade patriarcal e ainda tinha tempo pra se divertir. Portanto, um filme sobre uma mulher que se torna um cachorro não é ruim por sua proposta.

Se os elementos visuais são extravagantes, a escrita de Rachel Yoder – que é a autora do livro que deu origem ao filme – segue um caminho similar. Os diálogos são excessivamente expositivos, com os personagens, em diversos momentos, não apenas explicando seus sentimentos, mas repetindo-os à exaustão. Desde o primeiro minuto, o filme joga na cara do espectador suas intenções, com as palavras sendo ditas de maneira excessivamente literal, o que remove qualquer complexidade ou nuance das situações apresentadas. O público é tratado como se não fosse capaz de interpretar o que está sendo mostrado na tela, o que é frustrante para quem busca um pouco de sutileza em uma trama que poderia ser muito mais interessante se fosse abordada com mais cuidado.

Além disso, a mensagem do filme se perde em sua tentativa de ser uma reflexão sobre o papel da mulher. Canina tenta propor um discurso feminista, mas acaba ficando preso a um estereótipo de mulher frustrada que não consegue se encaixar no molde esperado pela sociedade. O filme sugere que a solução para o dilema da personagem é um retorno à natureza primal, uma espécie de libertação através da transformação em algo mais instintivo, mas isso nunca é realmente explorado com profundidade. Ao invés disso, o filme cai na armadilha de sua própria alegoria, tratando a maternidade e o feminismo de forma rasa e caricatural.

Crítica | Canina: a maternidade, o animalesco e o monótono
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No entanto, há algo de interessante na tentativa de o filme levantar questões sobre a maternidade e as expectativas culturais sobre o papel da mulher. Mesmo que o filme falhe em muitas de suas tentativas, ele ainda consegue provocar uma reflexão sobre como as mulheres são moldadas pelas expectativas sociais e como o simples ato de ser mãe pode transformar alguém, muitas vezes de maneira irreversível. A ideia de uma mulher perder sua identidade no processo de ser mãe é uma que, embora abordada de maneira bastante superficial, é válida e, em alguns momentos, tocante.

Entretanto, por mais que Canina tente se vender como uma obra de reflexiva sobre a maternidade, ela acaba sendo uma experiência que oscila entre o insustentável e o desinteressante. Ao invés de desafiar o público a pensar mais profundamente sobre os temas que toca, o filme se contenta em ser uma caricatura de si, tentando, sem sucesso, equilibrar um discurso feminista com momentos de surrealismo e comédia. Ao final, o que se leva é uma sensação de que o filme nunca realmente se encontrou, permanecendo apenas uma tentativa de algo mais profundo que, infelizmente, nunca se concretiza.

Se ao início da análise o filme nos propunha algo de uma complexidade que não foi capaz de entregar, ao final percebemos que o maior fracasso de Canina foi justamente sua tentativa de transformar o banal e o mundano em algo que precisasse ser dramatizado a todo custo. O que é simples e visceral, quando transformado em um espelho distorcido pela surrealidade, perde a força.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.