Para início de conversa, Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, é uma divertida comédia satírica, mas, felizmente, o longa não é apenas isso. Ele é um grito artístico que ecoa como manifesto – visual, político e cômico – do cinema brasileiro nos anos 90. Com sua câmera que ziguezagueia entre o pastiche e o teatro de revista, Carla Camurati orquestra um filme que está menos interessado em ser fiel a um período histórico e mais comprometido com a desconstrução total da pompa e circunstância da monarquia portuguesa. O resultado é uma obra que, mesmo cheia de exageros, ou talvez por causa deles, transforma a História com “H” maiúsculo em puro espetáculo farsesco.
A primeira impressão que se tem ao revisitar o filme hoje, especialmente em uma cópia remasterizada em 4K, é o quanto Carlota Joaquina continua ousado. Não só por seu escracho e irreverência, mas pelo domínio técnico com que Camurati conduz essa bagunça estilizada. Em uma época em que o cinema brasileiro ainda buscava se reorganizar após o colapso do setor no governo Collor, a diretora propôs algo inédito: um filme de época com estética de revista, senso de humor ácido e pegada visual que mais lembra um palco do que um set de filmagem. E funciona. Funciona porque não tenta parecer outra coisa.
Ao lado do saudoso fotógrafo Breno Silveira, Carla transforma cada quadro em composição pitoresca. Há planos simétricos, closes cômicos e uso expressivo da profundidade de campo que remetem ao barroco europeu, mas com sabor tropical. A escolha de uma paleta de cores vibrante, com muito vermelho sangue em technicolor – que flerta com a artificialidade de cenários quase teatrais – revela não só a intencionalidade estética, mas também uma crítica à própria construção da imagem do poder. Os figurinos, muitas vezes feitos com sucata ou elementos reciclados, também apontam para essa ideia de um império decadente, sustentado na aparência. Tudo é opulento, mas também ridículo. Exagerado, mas funcional à proposta.

Na montagem, o filme adota uma cadência acelerada, alternando momentos quase “brechtianos” – como os interlúdios narrados em voz off – com sequências que se aproximam de esquetes de humor televisivo. Esse ritmo, ainda que irregular em seu terço final, é essencial para manter o tom farsesco que sustenta o filme. Quando a estrutura tenta se acomodar dentro de uma narrativa mais tradicional, especialmente ao se aproximar do arco de Dom Pedro I, perde-se um pouco da energia inicial. Não chega a comprometer o todo, mas enfraquece a contundência com que o filme vinha subvertendo a narrativa histórica.
Marieta Severo e Marco Nanini são, sem exageros, a espinha dorsal da produção. Ela, com sua Carlota caricata, vaidosa e impiedosa, é um assombro de timing cômico e presença cênica. Seu domínio da linguagem satírica permite que a personagem nunca escorregue para a simples paródia, mantendo sempre um toque ameaçador por trás da ironia. Já Nanini entrega um Dom João completamente entregue à sua inutilidade real, transitando entre o grotesco e o patético com uma leveza que só um ator com sua experiência conseguiria. A química entre os dois – que o público brasileiro viria a reconhecer e celebrar ainda mais anos depois em “A Grande Família” – já era latente aqui, e ajuda a manter o filme em constante combustão.

Ludmila Dayer, em início de carreira, já demonstra presença como a jovem Carlota, e mesmo com pouco tempo de tela, entrega uma personagem viva, pronta para mergulhar no caos em que o filme se desenvolve. O elenco coadjuvante, ainda que em menor destaque, compõe bem a atmosfera de farsa, contribuindo para a ideia de um Brasil fundado em absurdos e mal-entendidos.
É curioso como Carlota Joaquina recorre a múltiplas línguas ao longo de sua trama – português europeu, espanhol, francês – e mesmo assim jamais perde sua identidade brasileira. Pelo contrário, essa salada linguística serve como metáfora perfeita para o caldeirão cultural e político em que o país se formou. A escolha não parece fruto de afetação internacionalista, mas de uma intenção deliberada de mostrar o Brasil como um país construído a partir de restos – de línguas, de culturas, de ideologias. Essa bagunça é o próprio coração do filme.
E se há algo que pode incomodar, é justamente o desfecho apressado. O terceiro ato parece pressionado por restrições de tempo ou orçamento, deixando algumas tramas soltas e encerrando a narrativa sem o impacto final que o filme merecia. Falta fôlego ou talvez confiança em expandir o escopo. Ainda assim, o que se vê até ali é suficientemente potente para consolidar Carlota Joaquina como marco da retomada cinematográfica brasileira e como uma das sátiras históricas mais corajosas do cinema nacional.

Aliás, se alguém ainda duvida do impacto dessa obra, basta olhar para fora: é quase impossível não enxergar em “Maria Antonieta”, de Sofia Coppola, o eco das escolhas visuais e estilísticas de Camurati. A iconografia feminina, a opulência como ironia, a desconstrução de figuras históricas… tudo está ali, ainda que com outro sotaque. E é justamente aí que se percebe a dimensão visionária do filme brasileiro: um cinema que, mesmo com menos recursos, ousou mais – e chegou antes.
Carlota Joaquina, Princesa do Brazil não é um filme perfeito têm como seu maior trunfo a forma como assume, escancaradamente, a artificialidade da narrativa histórica, utilizando-a como trampolim para rir, criticar e provocar. Ao ridicularizar reis e rainhas, o filme escancara o quanto há de farsa na origem do poder e de como essa farsa ainda reverbera.
Carlota Joaquina, Princesa do Brazil remasterizado em 4K chega ao circuito comercial no dia 14 de agosto.
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