Kiyoshi Kurosawa | mestre do terror psicológico reinventou seu próprio cinema em 2024
O2 Play/Divulgação

Crítica | Cloud – Nuvem de Vingança revela um sistema onde tudo é jogo e ninguém vence

Após dedicar um artigo especial aos três longas lançados por Kiyoshi Kurosawa em 2024 – todos exibidos no circuito internacional de festivais –, senti que Cloud – Nuvem de Vingança merecia, sozinho, uma análise mais cuidadosa. A razão disso não está apenas na força estética do filme ou na maneira como sua narrativa se desenrola com precisão. A motivação principal, na verdade, é mais singela: o longa finalmente chegou aos cinemas brasileiros, ainda que de maneira tímida e fora do timing da temporada de premiações. Foi o suficiente. Era preciso vê-lo em tela grande, com tempo e silêncio para absorver cada corte, cada respiração de personagem, cada nuvem pairando sobre o plano.

Kurosawa já declarou, em outras ocasiões, que vê o cinema de horror como meio para exorcizar os fantasmas íntimos. Mas em Cloud, esses fantasmas ganham uma escala nova – social, econômica, digital – e parecem se enraizar mais profundamente do que nunca na vida comum. Trata-se de um filme que começa no chão da fábrica, entre movimentos repetitivos e gestos esvaziados de significado, e termina entre as nuvens, literalmente, onde tudo é metáfora e nada é seguro. O ciclo entre o concreto e o etéreo é uma chave importante para compreender essa obra, que se revela aos poucos, plano a plano, como uma espécie de oráculo sombrio da contemporaneidade.

O protagonista, Ryôsuke Yoshii, interpretado por Masaki Suda, é um jovem operário japonês comum, cansado da previsibilidade de sua rotina. Quando decide abandonar o emprego e se reinventar como vendedor de produtos falsificados na internet, o que à primeira vista parece apenas mais uma história sobre um golpe banal revela, aos poucos, sua verdadeira natureza: uma crítica mordaz e multiforme ao capitalismo digital, à solidão urbana e à perda progressiva de vínculos reais. E é aqui que o filme revela sua primeira grande virtude: ele não grita. Cloud sussurra. Mas o faz com tamanha persistência que é impossível ignorar o eco que deixa na mente do espectador.

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Kurosawa domina como poucos o poder da sugestão. A câmera observa Ryôsuke com uma frieza quase documental, ao mesmo tempo em que pequenas distorções visuais – uma luz que pisca no fundo do plano, um ruído dissonante que entra na trilha sonora sem anúncio – indicam que algo está errado, mesmo quando nada acontece de fato. O horror não surge em grandes sustos ou aparições. Ele se infiltra, silencioso, nas frestas da realidade cotidiana, como uma rachadura que cresce até tornar impossível atravessar o chão sem cair.

A montagem, extremamente precisa, utiliza jump cuts com inteligência, como na memorável sequência do ônibus – em que a ruptura da continuidade espacial acentua o sentimento de desorientação. Já a fotografia, marcada por tons desbotados e uma paleta que oscila entre o acinzentado e o opressivo, reflete não apenas o estado mental do protagonista, mas o próprio peso do mundo ao seu redor. A cidade que ele habita é feita de corredores apertados, salas sem janelas e prédios que parecem todos iguais. Não há frescor, não há novidade, apenas repetição. A estética é a do desgaste.

O sobrenatural, sempre presente nos trabalhos de Kurosawa, aqui ganha uma roupagem difusa. Não há espectros à moda ocidental, nem entidades nominais. O que há são presenças. Algo que observa. Algo que espera. A aparição de um animal morto em posição suspeita ou uma figura imóvel na calçada basta para instaurar o desconforto. O terror vem do estranhamento, da percepção de que algo escapou ao controle e de que não há como recuperar o que foi perdido – porque, talvez, nunca tenha existido. E é justamente essa ambiguidade que torna Cloud tão poderoso. O terror aqui não tem rosto, mas tem forma.

Crítica | Cloud - Nuvem de Vingança revela um sistema onde tudo é jogo e ninguém vence
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Em dado momento, o filme muda de marcha e abraça o subgênero do revenge film. A revolta dos consumidores enganados por Ryôsuke se transforma em uma espécie de linchamento moral coletivo, que vai ganhando proporções cada vez mais exageradas. Mas não se trata de um simples desfecho violento. O que se vê é a manifestação de um sistema inteiro, corroído por anos de desigualdade e desconfiança, finalmente encontrando um alvo concreto para sua fúria difusa. É aqui que o filme cresce, tocando no ponto sensível que separa justiça de vingança, empatia de ressentimento.

Crítica | Cloud - Nuvem de Vingança revela um sistema onde tudo é jogo e ninguém vence
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Kurosawa constrói esse clímax com mãos firmes. A trilha sonora se intensifica, mas nunca explode. A montagem acelera, mas sempre mantém o rigor. É como se o filme estivesse nos preparando o tempo todo para esse momento, mas de forma tão sutil que não percebemos. E quando ele chega, não há catarse, apenas constatação: tudo aquilo que parecia uma chance de escapar do sistema, era apenas mais uma engrenagem. A ilusão da liberdade é, talvez, o pior tipo de prisão.

A última cena – na qual não revelarei nessa crítica –  é de uma beleza plástica que beira o onírico, mas que carrega em si a sensação de que estamos, de fato, presos dentro de um jogo. A referência à estética dos videogames não é gratuita, nem apenas estilística. É simbólica. A gamificação da vida, onde escolhas parecem livres, mas são sempre limitadas pelas regras invisíveis de um sistema maior, é o ponto de virada definitivo do longa. Estamos no jogo? Já saímos dele? Ou será que nunca houve jogo algum?

Cloud – Nuvem de Vingança é, no fim das contas, sobre aquilo que não conseguimos ver, mas sentimos todos os dias. Um horror construído não por criaturas ou maldições, mas por entregas atrasadas, salários defasados, conexões frágeis e promessas de ascensão que nunca se cumprem. Um filme que transforma o cotidiano em pesadelo sem recorrer à fantasia, que transforma a normalidade em ameaça.

Da repetição à ruptura, da fábrica ao jogo, Cloud nos leva pelas nuvens apenas para mostrar que, mesmo lá em cima, o sistema nos acompanha. Ele nos vê. Ele nos molda. E, como Kurosawa bem sabe, o verdadeiro horror está justamente em não sabermos onde termina o mundo real e onde começa o jogo.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.