Realizado a partir de fitas Mini-DV gravadas em 2001, Com Hasan em Gaza, de Kamal Aljafari reúne registros que o diretor fez durante uma visita a Gaza em busca de um amigo desaparecido. O que poderia ser apenas um reencontro pessoal acaba se transformando num retrato coletivo, atravessado por lembranças, ruínas e presenças que já são, em si, vestígios de um tempo perdido. Não há roteiro nem estrutura clássica: o filme se constrói no improviso, na troca de olhares, nos gestos cotidianos que revelam a vida em um território sempre à beira do colapso. É nesse movimento entre o íntimo e o histórico, entre o registro e a ausência, que Aljafari transforma o acaso em poesia e o simples ato de filmar em resistência.
Desde os primeiros minutos, o que se vê não é a narrativa clássica de uma busca, mas a desordem da vida real filmada sem ensaio. A câmera Mini-DV, pequena e de movimentos ansiosos, captura o presente como se ele fosse sempre prestes a desaparecer. Aljafari não parece interessado em compor planos equilibrados, tampouco em estabelecer um arco dramático. Seu interesse é em preservar a instabilidade como forma de verdade. Essa câmera que treme, que muda de mãos, que reage mais do que observa, é o próprio coração do filme. O resultado é um cinema que se recusa à autoridade do olhar único. Cada enquadramento parece ser compartilhado, como se a própria população de Gaza participasse da autoria.
Quando as crianças correm em direção à lente pedindo para serem filmadas, o que pedem não é fama nem registro banal: pedem permanência. Querem garantir, mesmo sem saber, um lugar na história. E Aljafari lhes concede isso. Ele entrega a câmera, cede o controle, permite que o filme se construa a partir de múltiplos pontos de vista. É uma espécie de democracia do olhar, uma estética que se opõe à lógica de produção industrial que dita quem filma e quem é filmado. Aqui, o cineasta não dirige, apenas acompanha – e essa renúncia é sua maior força.

Com Hasan em Gaza pode ser lido como uma atualização contemporânea do cinema primitivo, aquele das primeiras experiências dos irmãos Lumière. Tal comparação não é gratuita. Em ambos os casos, o que vemos são fragmentos do real que ainda não sabiam o que o cinema seria. Nos Lumière, a imagem era uma novidade que espantava. Em Aljafari, ela é uma sobrevivência que resiste. Quando o diretor filma uma simples partida de cartas, repete, em outro contexto, o gesto inaugural do cinematógrafo: registrar o banal para tocar o eterno. Mas agora, o eterno não é a inocência da modernidade nascente, e sim o eco trágico de uma vida ameaçada pela guerra e pelo apagamento.
A fotografia, se é que se pode usar o termo em um filme tão orgânico, é mais um corpo vivo do que uma composição pensada. As texturas granuladas, os contrastes queimados da Mini-DV e o enquadramento por vezes irregular criam uma sensação quase tátil. Essa crueza técnica não é descuido, mas método. Ao deixar visível o ruído da imagem, Aljafari nos lembra de que o real não é limpo nem estável. O registro digital dos anos 2000, com sua estética precária, adquire um valor poético, o de um tempo em que filmar era resistir, em que apertar o botão vermelho significava afirmar a existência diante do esquecimento.
A montagem, aparentemente desordenada, é na verdade um tecido de memórias. Não há uma cronologia rígida, tampouco a pretensão de explicar tudo. O filme se constrói por associações afetivas – um rosto, um som distante, uma rua – que vão formando, pouco a pouco, um retrato coletivo. Essa estrutura fragmentada aproxima Com Hasan em Gaza do ensaio cinematográfico, um tipo de cinema que reflete sobre si enquanto observa o mundo. Ao mesmo tempo, há uma linearidade emocional. A busca pelo amigo Hasan, ainda que nunca se cumpra plenamente, orienta a jornada. Ele é a ausência que dá sentido à presença dos outros.
O som, outro elemento crucial, é um campo de tensão constante. O ruído dos motores, o riso das crianças, os tiros distantes – tudo convive numa mesma frequência. Há momentos em que a imagem permanece escura por longos segundos, enquanto o som continua, como se o filme nos convidasse a imaginar o que a câmera não pôde captar. Esse uso do som como prolongamento da imagem reforça o caráter sensorial do longa. É como se Aljafari dissesse que, em Gaza, o silêncio também é uma forma de violência.
Mas talvez o aspecto mais fascinante de Com Hasan em Gaza seja o modo como ele transforma a filmagem em ato político sem jamais recorrer ao discurso direto. Não há entrevistas, nem depoimentos para fazer o público chorar de emoção ou indignação. O que há são presenças. O gesto de mostrar, de simplesmente deixar que as pessoas se coloquem diante da câmera, é em si uma denúncia contra a invisibilização. Quando o diretor reencontra casas destruídas ou lugares que já não existem, não precisa sublinhar nada, o contraste entre o passado preservado na fita e o presente ausente fora dela é devastador o suficiente.
A escolha por não dramatizar, por manter o registro cru, dá ao filme uma sinceridade rara. Não há heroísmo nem vitimização. O cotidiano – uma conversa, um jogo, uma caminhada – se torna o espaço onde a resistência se inscreve. O espectador, por sua vez, é convidado a preencher os vazios, a sentir o peso do tempo que separa aquelas imagens de hoje. E é impossível não pensar, ao ver os rostos das crianças sorrindo para a lente, que talvez muitas delas não estejam mais vivas. O filme, sem dizer nada, nos obriga a confrontar essa possibilidade.

Kamal Aljafari, conhecido por um cinema sempre próximo da memória palestina, aqui se revela ainda mais pessoal. Com Hasan em Gaza é uma carta a um amigo desaparecido, mas também uma carta a um país fragmentado. O diretor entende que a filmagem, por mais simples que seja, é um ato de fé. A câmera, leve e imperfeita, se torna uma extensão da saudade. Sua estética artesanal não busca a beleza convencional, mas a verdade emocional que emerge do improviso.
Leia mais sobre mais filmes da 49ª Mostra:
- Crítica | Pai Mãe Irmã Irmão: Três histórias, um mesmo desconforto
- Crítica | No Other Choice: eliminar (literalmente) a concorrência é o melhor plano de carreira
- 49ª Mostra | A Incrível Eleanor; As Desvirtuosas; Jay Kelly
- 49ª Mostra | Nosferatu; Dracula; Virtuosas
- 49ª Mostra | Richard Linklater em dose dupla: Blue Moon e Nouvelle Vague
- Crítica | O Beijo da Mulher Aranha: um refúgio de cores e tragédia
- Crítica | Foi Apenas um Acidente: o peso da vingança, resistência e o ato de continuar filmando
- 49ª Mostra | Aniki-Bóbó; A Sombra do Meu Pai
- Crítica | Sirāt é uma tentativa de um choque vazio, onde a forma eclipsa o conteúdo
- 49ª Mostra | Ontem à Noite Conquistei Tebas; Yanuni; Almas Mortas
- 49ª Mostra | Mirrors No. 3; Folha Seca
- Crítica | O Agente Secreto transita entre o afeto pela memória e o peso da ambição
- 49ª Mostra | Irmãos Versos Irmãos; Melhor Enlouquecer na Natureza; Galinha
- 49ª Mostra | Queen Kelly; Labirinto dos Garotos Perdidos
- Crítica | Há pedaços de cada filme da carreira de Guillermo del Toro em Frankenstein
- 49ª Mostra | Nova ‘78; After This Death; Urchin
- Crítica | O Diário de Pilar na Amazônia traz conscientização ambiental com sensibilidade
- Crítica | Bugonia – A comédia alienígena que revela o lado mais humano de Yorgos Lanthimos













Deixe uma resposta