Um terror dramático num cenário pacato sulista. Em Continente, do diretor Davi Pretto (“Rifle”), assistimos ao lúdico da ficção em uma tímida crítica à relação entre trabalhadores e os donos de terra.
Enredo
Na trama, após 15 anos no exterior, Amanda (Olívia Torres) volta à fazenda da família com o namorado francês Martin (Corentin Fila), e se depara com o caos. A moça encontra seu pai, dono de fazenda, em coma e uma tensão crescente entre os ruralistas. A única médica local, Helô (Ana Flavia Cavalcanti), se resigna a cuidar da população local, mas se compadece a uma causa maior – que aos poucos é salientada.
Ruralistas vampirescos
Em Continente, habitar em um lugar inóspito se sobrepõe a um bem-estar rotineiro. No filme, o verde interiorano emoldura indivíduos em uma coletividade distópica. Uma tensão revigorante para a carne num belo e horripilante vilarejo do Sul do Brasil. A narrativa corre pelo sangue por um molde vampiresco. No entanto, aqui, a figura pálida de dentes exuberantes popularmente conhecida desaba por terra ao ser personificada por seres, digamos, comuns: trabalhadores rurais.
Logo, conhecemos esta minoria inquieta que parece ter “sede” de – alguém – e/ou alguma coisa. A violência paira aos poucos como forma de resistência contra a Casa de Fazenda, mas sem quaisquer objetivos ou feitos plausíveis. Soa como um conflito iminente e superficial em alusão à deterioração dos seres sob a condição proletária. Pouco sabemos sobre a realidade “pré-Agenor” ou “Agenorista”, como delimitação de uma Era em que os trabalhadores viviam, ao que parece, em função de um propósito maior. Após a morte do então patrão, os eventos culminam em um labirinto de decisões tomadas pela avidez. A mim coube a incerteza do amor e ódio ao dono da propriedade – que contou e conta com a lealdade de seu capataz, Ezequiel (Breno De Filippo).
Um Sci-fi sulista
Diante disso, percebe-se o deslumbre do diretor por temas distintos que, curiosamente, consegue me animar em um Terror/Drama nacional. “Desejo e Obsessão”, da diretora francesa Claire Denis, está inteiramente no filme, aliás. Aos poucos, os sons atormentam pelo desconforto das mordidas no ápice do horror do longa. E cumpre. A sonoridade não foi somente o ingrediente principal das cenas, mas o menu completo para o apetite voraz dos personagens. Inclusive, a êxtase pelo prazer transmitido nestes momentos é o que dignifica a obra quanto ao gênero.
Acredito que também seja possível delinear um traço glorioso entre o longa e as nuances da Ficção Científica (Sci-fi). O gênero, no Brasil, apresenta subdivisões que exprimem a identidade nacional – ou seja, condição social e de pertencimento de um indivíduo a uma determinada cultura. A exemplo, o amazofuturismo, tupinipunk, cyberagreste e o sertãopunk, que, resumidamente, refletem a realidade de um povo de forma crítica.
No longa, o regionalismo é expresso por meio dos cenários, dialetos, costumes e dos indivíduos representados. O grupo busca acalentar, comedidamente, suas necessidades com o uso de placebos. Mas a ânsia aumenta e tensiona. Cabe, então, o questionamento:
A obra dialoga com a realidade, mas assertivamente, com o futuro?
Um terror ‘sangrento’
Embora alguns personagens queiram um futuro promissor para a comunidade, A desonra e a culpa são vencidas. O ato “vampirístico” ocorre a cada 15 dias. Do tempo que lhe vá acontecer, toma os nervos e aflora o desejo mais profundo dos aprisionados por sua fraqueza. Esta representação figurada é uma visão estimulante dos impasses sociais com elementos marcantes da cultura pop. A ficção é diligente e a liberdade criativa me encanta.
Não há qualquer sofisticação além dos efeitos práticos da maquiagem das mordidas e do sangue. Tudo é construído de forma contida ao clímax . Ademais, o longa transmite uma autenticidade emocional muito natural dos personagens. Vale ressaltar a performance dos atores que realizam gloriosamente esta função. Além do trabalho sonoro, a construção do universo garante uma experiência intuitiva. Diante disso, acredito que também espera-se a liberdade criativa do espectador para interpretar a obra que, evidentemente, possui uma segunda camada.
De todo modo, o “terror sangrento” não nos aterroriza pelo medo, mas pelo espanto. Tampouco diz respeito à morte, mas ao prazer vivaz. O drama acerta este universo e se desenrola em cenas silenciosas, repletas de planos fechados. Uma experiência reflexiva e satisfatória que deve ser vangloriada por transmitir as sensações sem o uso obrigatório de diálogos, mas a partir do esmero sonoro e visual da captação das imagens. Elogios excedentes a Continente – obra que compõe a famigerada lista de Halloween como estreia do mês.
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