Crítica | Crônicas do Irã é uma ode a rebeldia
(Foto: Seven Springs Pictures/Divulgação)

Crítica | Crônicas do Irã é uma ode à rebeldia

Com uma proposta simples e cinematografia econômica Crônicas do Irã expõe com muita coragem o pior e o melhor do país.

Crônicas do Irã, um dos filmes mais brilhantes e provocantes a surgir recentemente no Irã, possui qualidades que o ligam tanto às tradições formais modernistas do cinema iraniano pós-1979 quanto à tendência mais recente de asperezas sociais e políticas direcionadas à repressão autoritária da República Islâmica.

A abordagem estilística do filme é ao mesmo tempo simples e ousada. Em cada um dos seus nove episódios, a câmera fica fixa, “olhando”, por assim dizer, para uma única pessoa que é interrogada por uma figura de autoridade fora de cena. Cada cena se desenrola sem cortes, fazendo com que se assemelhe a uma peça de um ato só, com aspectos tanto documentais quanto dramáticos.

Crônicas do Irã, – o título vem de uma obra da renomada poeta e cineasta Forugh Farrokhzad –  foi escrito e dirigido pelos cineastas Alireza Khatami (“Os Versos Esquecidos”) e Ali Asgari (“Até Amanhã”). Talvez a melhor maneira de transmitir seu tom e estilo incomuns seja descrever suas duas primeiras cenas.

Na primeira, a câmera está voltada para um jovem elegante e bem-vestido, que está dizendo a um oficial fora de cena que ele e sua esposa querem nomear seu novo filho de David. O oficial não aceita. “Por que David?”, pergunta ele severamente. O jovem diz que é o primeiro nome do autor favorito de sua esposa –  nunca sabemos o sobrenome. Mas esse é um nome é ocidental, rejeita o oficial; o casal precisa de um bom nome iraniano para o filho. Eles vão e voltam assim por um tempo, até que o oficial pergunta ao jovem quem é seu autor favorito.

“Gholam Hossein Saedi”, ele responde. Uma audiência iraniana certamente riria da escolha do jovem por um dos escritores esquerdistas mais famosos do Irã, um inimigo da República Islâmica, mas também do oficial aparentando nunca ter ouvido falar de Saedi, um autor imensamente influente cuja obra “A Vaca” foi a base para o filme homônimo do falecido Dariush Mehrjui, amplamente creditado como o início da “Nova Onda Iraniana”, em 1969 – O diretor Asghar Farhadi presta homenagem tanto à história quanto ao filme em “O Apartamento”.

O jovem diz que não gosta de Gholam Hossien para o nome do seu filho e o oficial pergunta por que não apenas Hossein – o nome de uma das figuras mais proeminentes xiitas do Islã. O jovem responde que o nome é árabe, não iraniano.

Enquanto uma audiência iraniana encontraria muita comédia irônica nesta troca de diálogos, não-iranianos perceberão tanto a familiaridade do conflito – quem nunca teve que lutar contra a obstinação opressiva de um burocrata mesquinho? –  quanto sua inegável estranheza: Em que outro país o governo presume ditar como um casal pode nomear seus filhos?

Não descreverei o final deste episódio, exceto para notar que, como os finais de alguns outros episódios, acontece de forma abrupta e inesperada – uma técnica poética que observei em outros filmes iranianos pós-revolucionários, mais notavelmente nos de Abbas Kiarostami (“Gosto de Cereja”).

A Menina Dança

Crítica | Crônicas do Irã é uma ode a rebeldia
(Foto: Seven Springs Pictures/Divulgação)

Aliás, a influência de Kiarostami – que Khatami e Asgari reconheceram – também é evidente no segundo episódio, o único envolvendo uma criança. Seu nome é Selena, ela parece ter cerca de oito a dez anos e quando a vemos pela primeira vez, ela está no corredor de uma loja de roupas vestindo uma camisa fofa do Mickey Mouse e dançando ao som de música pop ocidental que está ouvindo nos fones de ouvido. Embora esta mini-Beyoncé certamente pudesse ser encontrada em praticamente todos os países do mundo, logo vemos por que ESSA só poderia existir no Irã.

Fora de cena, duas vozes discutem um uniforme que Selena será obrigada a usar em um próximo evento escolar. A voz da vendedora é dura e exigente, explicando as regras que o traje deve seguir; a outra voz, da mãe de Selena, concorda relutantemente. A ação da cena começa quando Selena é ordenada a experimentar uma peça de roupa. Ela volta ao quadro vestindo uma longa abaya cinza, uma vestimenta projetada para cobrir a forma de seu corpo. Pedida para voltar novamente, ela retorna com um hijab branco que cobre seu cabelo.

Esse processo continua até que o uniforme está completo e todos os traços de Selena, a individualidade, foram apagados; agora ela parece um autômato islâmico medieval anônimo, tamanho júnior. Qualquer espectador não muçulmano ortodoxo é obrigado a ver a transformação da pequena garota com uma mistura de assombro e horror. Mas não suponha que a mente e a personalidade de Selena foram subjugadas pelo “aprisionamento”. Quando a prova termina, ela rapidamente e de forma um tanto desdenhosa rasga as camadas do traje e retoma a dança.

Como outros episódios em Crônicas do Irã, este ressoa com um tom de dissidência penetrante, situando o filme em um momento particular do cinema iraniano. Quando “Sem Ursos” de Jafar Panahi foi exibido no Festival de Cinema de Nova York em 2022, o Irã estava sendo varrido por protestos – com o slogan “Mulheres! Vida! Liberdade!” – que seguiram a morte de uma jovem presa por usar um “hijab impróprio”. Mais do que protestos anteriores, este me pareceu não apenas político, mas cultural.

Crítica | Crônicas do Irã é uma ode a rebeldia
(Foto: Seven Springs Pictures/Divulgação)

Embora não contenha violência e nenhuma menção à política ou ao regime atual no Irã, Crônicas do Irã pode ser a validação mais dramática até agora dessa previsão. É uma crítica mordaz das relações de poder envenenadas na República Islâmica, relações que corrompem as interações das pessoas em todos os níveis da sociedade iraniana. E você pode ter certeza de que as autoridades iranianas entenderam isso exatamente assim. Depois que o filme recebeu críticas entusiasmadas e aclamação pública em todo o mundo, o Irã proibiu o co-diretor Ali Asgari de viajar – Alireza Khatami foi poupado dessa punição como cidadão canadense – e confiscou os passaportes, notebooks e smartphones de alguns membros do elenco.

Dadas as restrições extraordinárias que o Irã impõe aos seus cineastas, continua sendo um espanto que filmes tão intrépidos e originais como Crônicas do Irã de alguma forma continuem a surgir no país – de certa forma, lembra como nosso cinema conseguiu ser original e criativo em meio a uma ditadura militar. Asgari e Khatami até reconhecem de maneira inteligente as barreiras absurdas que eles e seus colegas enfrentam. Em uma cena, um cineasta enfrenta um oficial que, ao revisar seu roteiro, continua encontrando falhas nas ações e ideias. O cineasta exaltado responde rasgando um punhado de páginas após o outro. A cena seria simplesmente hilária se não fosse tão próxima da terrível realidade iraniana.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.