Crítica | Doctor Who - 2x2: Lux é uma brincadeira metalinguística com a luz
BBC/Divulgação

Crítica | Doctor Who – 2×2: Lux é uma brincadeira metalinguística com a luz

Em um universo onde viajar no tempo e no espaço já é rotina, Doctor Who decidiu ir além: atravessou a quarta parede, mergulhou na animação e, de quebra, levou o público junto. “Lux”, o mais recente episódio da série, é uma celebração do caos criativo que só Russell T Davies poderia orquestrar. Misturando live-action, animação vintage e uma pitada generosa de autorreferência, a história brinca com as fronteiras entre realidade e ficção, enquanto explora temas como luto, racismo estrutural e, claro, a relação obsessiva dos fãs com a própria série.

O cenário é um cinema em Miami, nos anos 1950, onde o Doutor (Ncuti Gatwa) e sua companheira Belinda (Varada Sethu) se deparam com Mr. Ring-a-Ding (dublado pelo excelente Alan Cumming), um vilão que escapa da tela como um Roger Rabbit cósmico, mas com um plano muito mais sinistro. A direção de Amanda Brotchie não economiza em contrastes: luzes que cortam a escuridão da sala de projeção, sombras que se alongam como tentáculos e enquadramentos que transformam cadeiras de cinema em celas invisíveis. A fotografia captura a estética dos anos 50 sem cair no pastiche, usando tons quentes para as memórias e cores ácidas para o mundo animado — uma escolha que reforça a dualidade entre nostalgia e perigo.

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Lux é um episódio que brinca e abusa da manipulação de expectativas. O episódio poderia ser apenas uma aventura sobre um desenho animado que ganha vida, mas Davies insere camadas de profundidade onde menos se espera. A história de Reginald Pye (Linus Roache), um homem que se trancou no cinema para reviver momentos com a esposa morta, é comovente sem ser piegas. Sua obsessão por filmes antigos ecoa a própria história de Doctor Who: quantos fãs não se agarram a episódios perdidos, reconstruídos em animações, como se fossem relíquias? A cena em que ele queima latas de filme é um golpe baixo para os espectadores que conhecem o apagão de episódios clássicos da BBC — uma referência dolorosa sobre como a memória pode ser tanto um refúgio quanto uma prisão.

E é aqui que a metalinguagem faz sua jogada mais ousada. Em certo momento, o Doutor interage diretamente com fãs da vida real, comentando críticas à era Disney da série e até citando “Blink”, episódio cultuado como o ápice da modernidade whovian. Essa quebra da quarta parede não é apenas um gracejo; é um convite para refletir sobre como o público consome a ficção. Será que, como Reginald, estamos presos a uma ideia imutável do que Doctor Who deveria ser? A resposta do episódio é um… talvez, entregue com um sorriso irônico e um efeito especial que faz Gatwa pular entre estilos de animação como um looney tunes cósmico.

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Falando em animação, a escolha por múltiplas técnicas — desde o traço Fleischer até o “Sonic Feio” — é tanto uma homenagem à história do cinema quanto um comentário sobre a imperfeição da arte. Quando o Doutor e Belinda são transformados em desenhos, a física do mundo cartoon não apenas serve para piadas (como pés que giram no ar antes da corrida), mas também para mostrar como a identidade deles é distorcida pela mídia que os captura. É uma sacada inteligente, ainda que o segmento possa dividir opiniões: há quem veja charme no retrô e quem ache o resultado desengonçado. Mas, convenhamos, qual desenho dos anos 50 não era?

O vilão, Mr. Ring-a-Ding, é um antagonista que oscila entre o hilário carismático e o aterrorizante. Seu riso é perturbador justamente por ser tão infantil. Cumming equilibra o tom como um Deus da Luz que nem sabe direito o que está fazendo — um contraste deliberado com a grandiosidade de vilões como o Toymaker ou Sutekh. Sua redenção final, transformando-se em energia pura é surpreendetemente etérea, lembrando “2001: Uma Odisseia no Espaço”.

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E não podemos ignorar como Lux aborda questões sociais com sutileza. A cena em que Belinda, uma mulher indiana, é barrada em um teatro segregacionista é breve, mas importante. Não há discurso, apenas o olhar resignado do Doutor — que, como um viajante do tempo, sabe que algumas lutas não se vencem com uma sonic screwdriver. Essa economia narrativa é típica de Davies: em vez de didatismo, ele prefere mostrar o racismo como um pano de fundo inescapável, mesmo em uma aventura que gira em torno de desenhos animados.

Quanto à dinâmica entre Gatwa e Sethu, o episódio acelera a química entre os dois. Se Ruby e o Doutor foram amigos à primeira vista, Belinda parece estar em um ritmo diferente — mais pé no chão, menos propensa a aceitar absurdos sem reclamar. A cena em que ela questiona por que o TARDIS não os teleporta para fora do perigo é uma das mais honestas da série. Mas, claro, o roteiro simplifica a construção desse vínculo, talvez pela limitação de oito episódios por temporada. É uma pena, porque Sethu traz uma energia cômica que mereceria mais espaço.

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E então chegamos à Sra. Flood (Anita Dobson), a vizinha enigmática cujas profecias sobre o “fim de Doctor Who” já beiram o meme. Suas aparições breves, embora intrigantes no início, agora soam como um fio narrativo que demora a se desenvolver. Se a intenção era criar suspense, o efeito colateral é uma certa impaciência.

Deixando a parte Flood de lado, Lux é um episódio que se permite ser muitas coisas: uma homenagem ao cinema, uma reflexão sobre o luto, uma piada interna gigantesca. Sua maior virtude está na coragem de experimentar. Quando o Doutor diz que “as histórias não são inofensivas”, ele poderia estar falando do próprio Doctor Who — uma série que, há seis décadas, molda imaginários, provoca discussões e, vez ou outra, escapa da tela para nos lembrar que a ficção nunca é apenas ficção. E se o riso de Mr. Ring-a-Ding ainda ecoa depois dos créditos, talvez seja porque a luz das histórias, como a do Lux Imperator, não se apaga. Só se transforma.

Os episódios novos da 2ª temporada de Doctor Who são lançados aos sábados, exclusivamente no Disney+.

Leia sobre o episódio anterior:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.