Crítica | Dollhouse: o terror da maternidade e a objetificação (literal) do trauma
Sato Company/Divulgação

Crítica | Dollhouse: o terror da maternidade e a objetificação (literal) do trauma

O terror envolvendo brinquedos e objetos, frequentemente tratados como simples acessórios ou representações de inocência, sempre carregou consigo uma carga de inquietação. No cinema, eles costumam representar a transgressão do que é familiar, trazendo à tona uma sensação de desconforto que desafia nossa relação com o que é considerado inofensivo. Em Dollhouse, o diretor Shinobu Yaguchi explora essa vertente do terror usando uma boneca de tamanho real não apenas como um objeto amaldiçoado, mas como uma metáfora para a objetificação do trauma, especialmente o da perda.

A premissa inicial do filme, onde uma mãe, interpretada por Masami Nagasawa, cria uma boneca para substituir a filha falecida, ecoa práticas reais contemporâneas, como a popularização dos bebês reborn – bonecos hiper-realistas projetados para imitar bebês de verdade. Esses brinquedos, mais do que nunca, se tornam uma forma de lidar com lutos reais, de preencher um vazio emocional, mas também revelam o quanto esse processo pode, paradoxalmente, ser uma tentativa de controle sobre algo impossível de possuir: a dor.

Yaguchi leva essa ideia a um extremo emocional e psicológico, não só ao abordar o luto, mas ao transformar a boneca em um objeto carregado de uma dor palpável e quase tangível. Ao longo do filme, a boneca deixa de ser um mero substituto da filha falecida e se torna uma representação distorcida dessa perda, uma forma de controle da mãe sobre seu sofrimento. Inicialmente, o objeto é apenas uma tentativa desesperada de preencher o vazio deixado pela tragédia, mas logo se torna uma prisão emocional para a personagem, refletindo essa objetificação. A mãe, ao tentar “dar vida” à dor, acaba tornando-a mais sólida, manipulável e, paradoxalmente, mais difícil de se afastar.

Dollhouse desafia a tradição do horror de objetos amaldiçoados. Enquanto filmes como “O Grito” e “O Chamado” exploram o terror de forma mais direta e contida, o filme de Yaguchi se permite dar saltos narrativos, misturando o medo com momentos de humor absurdamente desconfortáveis. Quando a obsessão da mãe pela boneca começa a escalar, a sensação de tensão é frequentemente quebrada por cenas que, à primeira vista, poderiam ser consideradas absurdas, como a tentativa de venda da boneca no mercado negro ou a presença de um “exorcista profissional” que se comporta de maneira excêntrica e pouco convencional. Esses elementos cômicos, embora fora de lugar no contexto de um terror tradicional, servem para desestabilizar o espectador, que fica perdido entre o que é real e o que é uma construção da própria obsessão da personagem.

A construção visual de Dollhouse é outra grande aliada da narrativa, pois ajuda a expandir as tensões emocionais de forma eficaz. A casa onde a história se desenrola se torna um símbolo da obsessão crescente da mãe. O cenário, que inicialmente parece um lar comum, vai se tornando cada vez mais sufocante, como se as paredes, ao invés de proteger, aprisionassem o sofrimento. A direção de arte transforma o espaço em um reflexo físico da fragilidade emocional da protagonista. A fotografia, sempre com luz baixa e cores lavadas, intensifica essa sensação de claustrofobia e de perda. Já nos momentos de paz ou de delírio há um uso muito interessante de uma luz branca estourada, que é pro público realmente desconfiar de que aqui é ou não um delírio.

As atuações de Masami Nagasawa e Tetsuya Fujiwara são fundamentais para que essa atmosfera seja eficaz. Nagasawa, em particular, entrega uma performance cheia de camadas, passando de uma mulher profundamente marcada pela dor para uma figura quase caricatural em sua obsessão. Sua personagem, ao tentar controlar a dor da perda, acaba se perdendo cada vez mais. Fujiwara, que interpreta o marido, tem um papel mais moderado, mas ainda assim é importante para estabelecer o contraste entre a racionalidade e a crescente irracionalidade da esposa. A química entre os dois ajuda a humanizar o drama familiar, embora o filme não explore profundamente sua relação, o que poderia ter oferecido uma dimensão emocional mais rica à história.

O filme não é perfeito e, em alguns momentos, exagera nas soluções para resolver as questões levantadas ao longo da narrativa. A reviravolta final, embora intrigante, pode parecer abrupta e forçada, quebrando o clima de suspense construído até ali. No entanto, essa resolução, ainda que um tanto desconectada, reforça a ideia de que o verdadeiro terror em Dollhouse não é apenas o sobrenatural, mas a maneira como lidamos com o que não podemos controlar ou entender.

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