Crítica | Dormir de Olhos Abertos: um mergulho silencioso no desalinho do pertencimento
Vitrine Filmes/Divulgação

Crítica | Dormir de Olhos Abertos: um mergulho silencioso no desalinho do pertencimento

Sentir-se um peixe fora d’água é uma metáfora recorrente, mas raramente ela é tratada com tanta literalidade sensorial e cinematográfica quanto em Dormir de Olhos Abertos. A obra dirigida pela alemã Nele Wohlatz e produzida por Kleber Mendonça Filho e Emilie Lesclaux, transforma esse desconforto existencial em experiência fílmica, nos guiando por um Recife que pulsa estranhamento, silêncio e um tipo de beleza que nunca se oferece por completo. O longa parte da fragilidade de uma turista taiwanesa para retratar, com camadas poéticas e estruturais, o peso sutil – e quase invisível – de ser um corpo deslocado em terra estrangeira.

A trama acompanha Kai, interpretada por Liao Kai Ro, uma jovem taiwanesa que viaja sozinha a Recife com a expectativa de férias leves. Seu percurso se transforma em algo muito mais íntimo e complexo à medida que ela cruza os caminhos de Fu Ang, vivido por Wang Shin-Hong, um imigrante chinês que comanda uma loja de guarda-chuvas – curiosamente, em uma cidade de clima quente e quase sem chuvas. A relação entre eles cresce com certa naturalidade, mas sem nunca se fechar em laços típicos de amizade ou romance. Durante sua estadia, Kai também encontra vestígios da vida de Xiao Xin (Chen Xiao Xin), uma jovem chinesa que vivia na cidade antes dela e que se comunica com o mundo através de postais que parecem narrar uma outra Recife, invisível aos olhos de quem apenas transita por ela.

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Essas três figuras centrais constroem uma narrativa fragmentada, guiada por encontros e desencontros, por silêncios que dizem muito, e por uma série de tentativas de enraizamento que nunca se concretizam. Nele constrói esse mosaico narrativo com enorme delicadeza, negando o convencional e apostando em uma estrutura que se desfaz à medida que avança. Personagens importantes desaparecem sem explicação, ou se diluem na montagem que alterna tempos, espaços e subjetividades, sem se preocupar em “amarrar” tudo ao final.

Esse recurso da montagem é um dos pontos mais marcantes do longa. Os dois tempos da narrativa – o presente de Kai e o passado de Xiao Xin – se entrelaçam por meio de pistas visuais e sonoras, como os postais escritos por uma e lidos por outra. A montagem evita a linearidade e aposta em cortes secos e deslocamentos espaciais que sugerem o movimento contínuo desses imigrantes, sem raízes e sem rumo fixo. É uma escolha que exige do espectador uma atenção cuidadosa, mas que também reflete, na forma, o conteúdo da obra: uma vida que não se fixa, um mundo que não acolhe.

A fotografia segue a mesma lógica. Os enquadramentos preferem planos abertos e ângulos distantes, que colocam os personagens sempre pequenos diante da paisagem – sejam ruas quentes do Recife, interiores abafados de apartamentos ou lojas improvisadas. Essa opção estética acentua o sentimento de estranhamento e solidão. A cidade não é cenário, é presença. Mas uma presença que observa, que expulsa, que não convida. Ao contrário da Recife vibrante que costuma habitar o cinema brasileiro recente, aqui temos uma Recife refratária, onde o mar não refresca e o sol não aquece. Tudo é descompassado. Tudo parece um pouco fora de lugar – como os próprios protagonistas.

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O uso do som também merece destaque. Há uma multiplicidade de línguas faladas ao longo do filme – mandarim, português, espanhol, inglês, alemão – mas essa pluralidade não aproxima, ao contrário, ela distancia. São línguas que se cruzam, mas não se entendem. Muitas vezes, vemos os personagens tentando se comunicar e falhando. Outras vezes, o silêncio é a escolha mais segura. Essa abordagem nos leva a pensar não apenas na dificuldade prática da comunicação entre culturas, mas também nos limites do idioma como ferramenta de expressão emocional. É possível se sentir sozinho mesmo rodeado de palavras.

O roteiro, assinado por Nele Wohlatz e Pío Longo, aposta na economia de diálogos e na força dos gestos. Ao invés de grandes falas, vemos momentos banais, cotidianos, que carregam em si uma carga simbólica profunda. Comer, dormir, esperar, andar – esses verbos ganham nova dimensão quando vistos sob a ótica do estrangeiro. E essa atenção ao detalhe, à rotina, ao tempo que se arrasta, reforça a ideia central de que viver longe da terra natal é um estado de alerta constante. Dormir com os olhos abertos, afinal, é isso: nunca estar completamente relaxado, nunca se entregar por inteiro ao ambiente.

É nesse ponto que o título do filme se revela uma síntese de sua proposta. Dormir de olhos abertos não é uma contradição, mas uma necessidade para quem está deslocado. Para quem precisa vigiar o próprio corpo em um território que o lê com estranhamento. As cenas em que os personagens repousam em meio ao caos – ou o observam do lado de fora – condensam esse sentimento com uma força visual impressionante.

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As atuações são igualmente contidas e eficazes. Liao Kai Ro constrói sua personagem com uma melancolia suave, que nunca descamba para o exagero. Wang Shin-Hong entrega uma performance silenciosa, mas profundamente expressiva, especialmente em sua transição entre passado e presente. E Chen Xiao Xin, mesmo presente de forma fragmentada, marca o filme com sua entrega emocional. Juntos, eles dão corpo a personagens que não se explicam, mas que se fazem entender nos pequenos gestos, nas hesitações, nos silêncios que preenchem a tela.

Dormir de Olhos Abertos é, assim, um filme que se recusa a ser convencional. Seu ritmo é lento, sua estrutura é livre, sua estética é pensada para incomodar – e, ao mesmo tempo, acolher. Pode ser frustrante para quem espera reviravoltas, clímax ou resoluções. Mas é justamente nesse “não lugar” que ele encontra sua beleza. Um filme sobre personagens que estão em trânsito – e que nos convidam a repensar o que é, de fato, pertencer. Um cinema que exige mais do sentir do que do entender. E que, por isso mesmo, permanece.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.