Sempre que um novo capítulo de Avatar surge no horizonte cultural, a discussão crítica parece orbitar inevitavelmente o mesmo eixo: de um lado, o deslumbramento com a técnica visionária e a construção de mundo; do outro, um certo desdém pelo roteiro considerado derivativo ou pouco original. É um debate válido, mas que corre o risco de se tornar reducionista, especialmente diante de um filme como Avatar: Fogo e Cinzas. Pois o que James Cameron e sua equipe propõem, de forma cada vez mais assertiva, não é uma revolução narrativa a cada episódio, mas uma imersão total e emocional em um universo cujos ciclos de conflito, perda e resistência são, intencionalmente, espelhados e amplificados. A grandiosidade aqui não está na surpresa do enredo, mas na profundidade com que se explora um território já mapeado, tanto geográfica quanto tematicamente.
O ponto de partida de Fogo e Cinzas é sintomático dessa escolha. A narrativa segue de perto os eventos de “Avatar: O Caminho da Água”, com a família Sully – Jake (Sam Worthington), Neytiri (Zoe Saldaña) e os filhos – ainda lutando para processar o luto pela perda de Neteyam (Jamie Flatters). A sensação de déjà vu que alguns espectadores podem ter ao acompanhar a nova ameaça à paz não é um descuido, mas uma declaração de princípio. Cameron, ao lado dos roteiristas Rick Jaffa e Amanda Silver (dupla que trabalhou nos últimos quatro longas da franquia “Planeta dos Macacos”), estão interessados em mostrar a natureza cíclica do conflito. O colonialismo predatório da RDA (Administração de Desenvolvimento de Recursos, em português) não cessa; apenas encontra novas formas e novos aliados. A mensagem ecológica e anti-imperialista, embora direta, ganha peso justamente por essa insistência. É como se o cineasta dissesse: o problema persiste, então a luta também devem persistir.
É nesse terreno aparentemente familiar, porém, que Fogo e Cinzas se estabelece como o filme mais rico da trilogia até o momento. O diferencial crucial está no aprofundamento da dimensão humana (ou na’vi) dos personagens. Cameron utiliza a estrutura épica e a duração generosa (com cerca de 3h20) não para simplesmente adicionar mais batalhas espetaculares, mas para tecer uma tapeçaria de dramas familiares e crises de fé. A técnica cinematográfica, da captura de movimento à fotografia que maravilha os olhos, está a serviço da expressão emocional.
O luto da família Sully é o motor dramático. A direção de Cameron e a atuação via captura de performance de Worthington e, especialmente, de Saldaña, são primorosas em externalizar conflitos íntimos. Jake, ainda com a psique de um militar humano, lida com a dor de uma forma que colide com a tradição espiritual de Neytiri. Esta, por sua vez, vive um tormento fascinante; seu ódio pelo “povo do céu” agora habita o corpo do marido e corre nas veias de seus filhos híbridos. A angústia de Lo’ak (Britain Dalton), carregando o fardo da culpa pela morte do irmão, e sua busca por reconhecimento paterno, constroem um arco de coming-of-age comovente e universal. São microdramas familiares amplificados pela escala planetária do conflito, e é nesse contraste que o filme brilha.
A grande jogada narrativa, no entanto, é a introdução dos Mangkwan, o Povo das Cinzas, e sua líder Varang, interpretada por Oona Chaplin. Este novo clã não é apenas mais um grupo exótico de Pandora; é uma ruptura ideológica dentro do próprio universo na’vi. Sua história – terem perdido a fé em Eywa após uma catástrofe vulcânica à qual a deusa não respondeu – introduz um debate sobre religião, descrença e trauma coletivo. Visualmente, o contraste é evidente, saímos dos azuis e verdes luminescentes das florestas e dos recifes para os negros, cinzas e laranjas incandescentes de um território devastado. A direção de arte e o design de produção, sempre impecáveis nesta franquia, criam uma estética fúnebre e agressiva para este povo, refletindo sua raiva interna.

Varang é, sem dúvida, a personagem mais interessante do filme. Sua aliança pragmática e volátil com o recombinado Quaritch (Stephen Lang) serve para explorar ambos os lados de maneira nova. Quaritch, agora preso permanentemente a um corpo na’vi, é forçado a confrontar sua própria identidade e lealdades. Essa complexificação do antagonista é um acerto e mostra como Cameron usa sequências de ação e negociação política para desenvolver personagens, e não apenas para gerar cliffhangers.

A jornada de Kiri (Sigourney Weaver), a filha adotiva com uma conexão misteriosa com Eywa, serve como contraponto espiritual à jornada do povo das cinzas. Enquanto estes abandonaram a fé, ela a abraça com ainda mais força. A solução técnica para manter Weaver no elenco – interpretando uma adolescente através da captura de movimento – pode soar estranha em teoria, mas o resultado é dissipado pela profundidade e doçura que a atriz confere à personagem. Sua busca por origens e significado acrescenta uma camada metafísica que dialoga diretamente com o tema central da fé.

Tecnicamente, como era de se esperar, o filme é um deslumbre contínuo. A fotografia de Mauro Fiore doma a paleta de cores quentes do território vulcânico com maestria, criando composições que são ao mesmo tempo, ameaçadoras e majestosas.
A grande surpresa, em termos de execução, está na montagem. Com uma equipe de seis editores liderados por Stephen E. Rivkin, o filme realiza um feito notável: mesmo com uma trama ramificada, seguindo múltiplos personagens e clãs, a narrativa flui com clareza e ritmo surpreendentemente ágil para sua extensão. As sequências de batalha, mais uma vez coreografadas com uma clareza espacial rara em blockbusters contemporâneos, são cortadas para maximizar a compreensão da geografia do conflito e o impacto emocional de cada momento de perigo. A trilha sonora e o design de som constroem uma imersão auditiva completa, da calma dos rituais aos estrondos cataclísmicos das erupções.
É inevitável, contudo, abordar o ponto que segue sendo o calcanhar de Aquiles da saga para muitos: o personagem Spider (Jack Champion). Se já era divisivo no filme anterior, aqui sua centralidade na trama e uma interpretação que soa deslocada em meio a um elenco tão comprometido podem gerar ruído para parte do público. Suas escolhas e como são apresentadas nem sempre encontram a mesma verossimilhança emocional que impera nos outros arcos. É uma falha de casting e direção de atores que, felizmente, não chega a derrubar a estrutura sólida ao redor, mas que serve como lembrete de que até mesmo um mestre como Cameron pode falhar na sintonia fina de alguns elementos.
Avatar: Fogo e Cinzas consolida a linguagem cinematográfica desta franquia. É um cinema íntimo com escalas gigantescas. Ele repete fórmulas, sim, mas o faz com a consciência de que alguns ciclos – o do luto, o da resistência cultural, o da ganância destrutiva – são, infelizmente, intermináveis. A resposta de Cameron a essa repetição não é uma inovação narrativa, mas o aprofundamento emocional e o refinamento técnico absoluto. O filme é uma defesa ardente do poder do cinema como experiência sensorial e coletiva. A recomendação de vê-lo na maior tela possível, de preferência em 3D, não é marketing; é parte integral da proposta.

Em uma era de consumo doméstico, Cameron insiste, com razão, que algumas jornadas pedem um ritual compartilhado de deslumbramento. Fogo e Cinzas pode não reinventar a roda narrativa, mas a coloca para girar com uma paixão, um cuidado artesanal e um domínio da linguagem cinematográfica tão impressionantes que é difícil não se render à sua chama. Ele não convida apenas a olhar para Pandora; convida a sentir sua dor, sua resistência e sua beleza agônica com uma intensidade rara. E, no final das contas, não é para isso que servem as grandes telas?
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