O cinema dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne construiu, nas últimas décadas, um território estético e moral tão reconhecível quanto respeitado. Seu olhar compassivo, direcionado de forma quase obstinada para os excluídos da sociedade europeia, gerou obras memoráveis como “A Promessa” e “A Criança”, filmes que fundiram forma e conteúdo com uma honestidade rara. Ao assistir a Jovens Mães, seu mais recente trabalho laureado com o prêmio de Melhor Roteiro em Cannes desse ano, somos conduzidos com a segurança de quem conhece o caminho. A mão que filma é experiente, o compromisso é inabalável, a humanidade, profunda. No entanto, percorrido esse trajeto conhecido, surge a inevitável pergunta: quando um estilo tão consistente e uma temática tão fiel podem se tornar, além de uma marca autoral, um território confortável que, paradoxalmente, limita a potência crítica que o originou?
A trama nos coloca dentro de um abrigo estatal belga para adolescentes grávidas ou mães recentes. Ali, acompanhamos cinco jovens – Jessica, Perla, Julie, Ariane e Naïma –, cada uma carregando um fardo de abandono, violência familiar, dependência química e uma imaturidade que choca diante da responsabilidade da maternidade. Os Dardenne, como antropólogos do contemporâneo, mapeiam esse microcosmo. A câmera, sempre na mão, é um órgão sensorial. Ela treme sutilmente não para imitar um documentário barato, mas para respirarem com as personagens. Acompanha-as em close-up durante crises de choro, segue seus corpos cansados subindo e descendo escadas de instituições, permanece em planos demorados enquanto elas tentam, com hesitação, amamentar ou trocar uma fralda.

A fotografia, que aproveita ao máximo a luz natural dos corredores e quartos do abrigo, recusa qualquer embelezamento. A paleta de cores é crua, terrosa, refletindo a aspereza daquelas realidades. A montagem, por sua vez, é elíptica e paciente. Não há cortes bruscos para “criar dinamismo”; o tempo cinematográfico se aproxima do tempo real, forçando-nos a viver a lentidão e a angústia daquelas decisões.
Tecnicamente, é uma aula de como o cinema pode ser um instrumento de presença. A opção por atrizes estreantes, cujos rostos não carregam a bagagem de outros papéis, amplifica a sensação de autenticidade. Elas não “atuam” a fragilidade; parecem habitá-la. É aqui que o cinema dos Dardenne funciona com maestria, ao traduzir questões sociais complexas em gestos mínimos, em olhares, em silêncios preenchidos pela dor.
O roteiro, premiado em Cannes, estrutura-se como um mosaico de pequenas tragédias cotidianas. A narrativa alterna com fluidez entre as histórias das cinco jovens, evitando cair em um didatismo sociológico. Mostra a rede precária de sororidade que se forma no abrigo – onde dividem tarefas domésticas e se apoiam contra os vícios –, mas não romantiza essa união. A violência geracional é um fantasma tangível. A maioria foi abandonada pelas próprias mães e, agora, é abandonada pelos pais de seus filhos, homens jovens protegidos por suas famílias, livres de qualquer consequência. Os Dardenne são ferinos ao expor como a estrutura familiar tradicional, longe de ser um porto seguro, opera como uma máquina de exclusão para quem não se encaixa em seu modelo nuclear e patriarcal.

No entanto, é na resolução narrativa, ou na falta de uma ruptura mais ousada dentro de sua própria gramática, que Jovens Mães revela suas contradições e alimenta a sensação do “já visto”. Após quase duas horas imersos em um retrato cru de opressão estrutural, o filme parece buscar uma conclusão que, ainda que não seja propriamente feliz, recai sobre uma esperança notavelmente conservadora. A ideia de que a dignidade e uma vida melhor para essas jovens ainda estariam, em última instância, vinculadas à presença de uma figura masculina – mesmo que falha e irresponsável – soa como um refluxo narrativo. É como se, após tanto empenho em denunciar as amarras do sistema, os diretores não conseguissem imaginar para suas personagens uma libertação que não passe, mesmo que simbolicamente, por uma reinserção nessa mesma lógica. Essa escolha torna a obra, em seu momento final, menos provocadora do que seu desenvolvimento prometia.

O realismo social “dardenneano”, com sua câmera nervosa, seus atores não profissionais e seus cenários austeros, tornou-se um modelo tão eficiente e repetido que arrisca a naturalização. Para o espectador familiarizado com sua filmografia, Jovens Mães oferece poucas surpresas formais ou conceituais. Ele executa com excelência técnica e sensibilidade humana um receituário que os próprios diretores ajudaram a criar. A pergunta que fica não é sobre a qualidade do filme, mas sobre sua capacidade de renovar o olhar. Se antes esse estilo era um golpe de faca na carcaça do cinema burguês, hoje ele corre o risco de se tornar uma espécie de “realismo de qualidade”, previsível em sua imprevisibilidade temática.
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