Crítica | Em 'Sorry, Baby', o trauma não é um evento, mas uma paisagem a ser atravessada
A24/Divulgação

Crítica | Em ‘Sorry, Baby’, o trauma não é um evento, mas uma paisagem a ser atravessada

O cinema, com frequência, busca a catarse. A cena brutal, o confronto dramático, o discurso empoderador. Em Sorry, Baby, primeiro longa-metragem escrito, dirigido e protagonizado por Eva Victor, essa expectativa é meticulosamente desmontada. O filme propõe uma abordagem radicalmente diferente para narrar os desdobramentos de uma violência sexual, ele troca o espetáculo do trauma pela sua geografia íntima e cotidiana. É uma obra de rara sutileza e coragem, que se sustenta menos no que mostra e mais no que insinua, menos no golpe e mais na respiração ofegante que o segue.

A narrativa, estruturada em cinco atos que funcionam mais como estados de espírito do que como marcos tradicionais de trama, acompanha Agnes, interpretada pela própria Eva Victor. Somos apresentados a ela já em um “depois”: professora substituta em sua antiga universidade, recebe a visita da amiga Lydia, vivida por Naomi Ackie, que está grávida. O reencontro, pontuado por um humor seco e um afeto contido, é nosso portal para o passado. Aí o filme passa para outro momento dessa narrativa, no passado, quando Agnes era uma aluna de pós-graduação promissora, cujo talento atrai a atenção do professor Decker (Louis Cancelmi). O abuso acontece. Mas a câmera, em uma das escolhas mais eloquentes da diretora, se recusa a entrar no quarto.

Aqui reside um dos pilares da força fílmica de Sorry, Baby. A direção de Eva e a fotografia sensível de Mia Cioffi Henry compreendem que a violência real muitas vezes reside no silêncio e na ausência. A sequência do ato em si é um estudo em economia narrativa e impacto emocional. Uma tomada estática, exterior, da casa do professor. Vemos a luz do dia minguar, a tarde ceder à noite. A câmera, imóvel, observa a fachada inexpressiva. Cortes bruscos marcam a passagem do tempo dentro daquele espaço inacessível. Não há som interno, não há imagem da violência. A violência está justamente naquela janela iluminada, na nossa imaginação forçada a preencher o vazio, na passagem implacável do tempo que Agnes está presa a viver.

Essa linguagem cinematográfica refinada permeia toda a obra. A fotografia de Henry constrói um visual que é, ao mesmo tempo, aconchegante e glacial, muito parecido com a pequena cidade universitária da Nova Inglaterra que serve de cenário. Os interiores da casa de Agnes são frequentemente envoltos em penumbra, com enquadramentos apertados que criam uma atmosfera claustrofóbica, refletindo seu estado mental de enclausuramento pós-trauma. No entanto, a diretora também permite que a luz natural, suave e difusa, banhe cenas de aparente normalidade, criando um contraste doloroso entre a beleza do mundo e a turbulência interior da protagonista. A mise-en-scène – termo que se refere a tudo o que é colocado diante da câmera: cenário, figurino, atuação – é meticulosa.

O guarda-roupa de Agnes também diz muito: roupas largas, camisetas gastas, jaquetas acolchoadas que parecem ser uma carapaça, uma tentativa de se proteger e de sumir dentro do próprio corpo. A linguagem corporal de Eva é outro elemento crucial. Seus gestos são contidos, seus silêncios são preenchidos por um turbilhão de pensamentos visíveis apenas em seus olhares. A forma como ela lida com sua identidade de gênero no filme – a atriz é uma mulher trans – também é tratada com uma naturalidade: não é um ponto de conflito da trama, mas sim uma camada a mais da personagem, perceptível na corporalidade, no estilo e em momentos sutis, como o preenchimento de um formulário.

Crítica | Em 'Sorry, Baby', o trauma não é um evento, mas uma paisagem a ser atravessada
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O roteiro de Eva se afasta deliberadamente de um diálogo “cinematográfico” tradicional, aquele que soa como um discurso pronto. Em vez disso, ele abraça uma afetação quase teatral e uma cadência peculiar, podendo, a princípio, soar artificial. No entanto, essa escolha serve a um propósito duplo. Primeiro, ela suaviza os momentos de maior densidade emocional, impedindo que o filme caia em um melodrama fácil. Segundo, e mais importante, ela reflete o próprio mecanismo de defesa de Agnes. Seu humor, suas tiradas desconexas e desconfortáveis são a arma que ela usa para criar distância, para tentar domesticar o indomável. O filme é, de fato, “hilarante e sinceríssimo” ao mesmo tempo, porque entende que o riso e a dor não são opostos, mas companheiros de um mesmo processo de sobrevivência.

O elenco de apoio é fundamental para ancorar Agnes nesse mundo. Ackie, como Lydia, transcende completamente o clichê da “melhor amiga negra apoio”. Ela é uma personagem complexa, com sua própria jornada (a gravidez) e uma dinâmica de amizade que é tanto de cumplicidade quanto de estranhamento. A química entre elas é palpável, e Ackie oferece o contraponto emocional necessário ao estoicismo muitas vezes apático de Agnes.

Crítica | Em 'Sorry, Baby', o trauma não é um evento, mas uma paisagem a ser atravessada
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Em uma participação breve, porém deslumbrante, John Carrol Lynch comprova por que é um mestre entre os character actors – atores especializados em papéis marcantes de apoio –, trazendo humanidade e peso a uma pequena aparição. Lucas Hedges, como o vizinho Gavin, representa uma possibilidade de conexão afetiva, mas suas limitações – como quando projeta um futuro que Agnes não deseja – mostram como o trauma ressoa até nos encontros mais gentis. E Kelly McCormack, como a colega Natasha, quase rouba a cena com seu egoísmo cômico e patético, lembrando-nos que a vida, com todas as suas mesquinharias, segue implacável ao redor da dor central de Agnes.

É justamente nesse “seguir em frente” que Sorry, Baby encontra sua reflexão mais potente. O filme não é sobre a violência em si, mas sobre o que vem depois. Sobre o trabalho silencioso e diário de carregar uma fratura. A apatia de Agnes, que é, na verdade, sua tese central: o trauma não se resolve com um clímax dramático; ele se administra. Dia após dia. Entre aulas, dissertações, sexo casual, visitas à amiga, cuidados com o gato. A recuperação é mostrada como um processo não linear, cheio de idas e vindas, onde um dia “bom” pode ser simplesmente um dia em que você consegue se focar no trabalho. A cena do banho, em que Agnes fala sozinha, tentando racionalizar o que aconteceu, é um retrato cru e comovente desse processamento interno caótico.

Sorry, Baby é, no fim, um filme sobre a difícil e heroica arte de seguir andando, mesmo quando o chão parece desmoronar a cada passo. E sobre como, às vezes, a forma mais profunda de resistência é simplesmente persistir, com todas as contradições, o humor inadequado e a apatia que for necessária. É uma obra que não quer chocar com o horror, mas sim comover com a delicadeza tortuosa de se reconstruir.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.