Crítica | Enterre Seus Mortos: A beleza do caos na mente de Marco Dutra
Globoplay/Divulgação

Crítica | Enterre Seus Mortos: A beleza do caos na mente de Marco Dutra

É profundamente familiar o apocalipse de Enterre Seus Mortos, o novo filme de Marco Dutra. Familiar não porque nos reconhecemos em meio a foguetes sendo lançados ao espaço, animais mortos nas estradas ou seitas religiosas que cultuam o fim, mas porque Dutra, mais uma vez, encontra humanidade no colapso. Desde “Trabalhar Cansa” (feito em parceria com Juliana Rojas), ele se consolidou como um dos nomes mais criativos do cinema de gênero no Brasil, e aqui reafirma sua ousadia em transformar o absurdo em expressão emocional. O que vemos é uma tragédia de proporções cósmicas tratada com uma naturalidade quase doméstica – um fim do mundo onde se bebe, ama e dorme mal.

Adaptado livremente do livro de Ana Paula Maia, o filme transporta o universo árido da literatura da autora para um cenário de ficção científica e horror metafísico. Se no texto original havia um faroeste sujo, Dutra amplia a escala e constrói uma mitologia própria, misturando distopia, terror e comédia com o mesmo entusiasmo de quem abre todas as janelas de casa durante uma tempestade. O resultado é um longa que joga para todos os lados, às vezes com genialidade, outras com desorientação, mas sempre com uma convicção que o torna impossível de ignorar.

A narrativa acompanha Edgar Wilson (vivido por Selton Mello) e Nete (Marjorie Estiano), dois trabalhadores encarregados de recolher carcaças de animais nas estradas. O mundo ao redor parece ter desistido de si mesmo; a carne é escassa, as pessoas partem em foguetes rumo ao espaço e uma nova religião domina o que sobrou das comunidades, com seus sermões apocalípticos e crença em entidades cósmicas. Dutra transforma esse cenário em um laboratório de sensações, mais interessado em observar a apatia e o humor involuntário dos personagens diante do colapso do que em explicar suas causas.

Há, logo de início, um jogo interessante entre o realismo e o delírio. A fotografia, de Rui Poças, cria um contraste entre luzes ofuscantes e sombras espessas, aproximando o longa de um western distópico. As imagens parecem sempre em tensão; o calor da terra é verde, não o sépia habitual dos filmes apocalípticos, e as sombras invadem as feições dos personagens como se algo os observasse o tempo todo. Essa escolha estética reforça o caráter ambíguo do universo – entre o sujo e o sublime, o banal e o místico. A câmera acompanha os corpos exaustos com proximidade, em planos que beiram o sufocante, mas também abre espaço para composições grandiosas, quase teatrais, quando o absurdo precisa respirar.

Crítica | Enterre Seus Mortos: A beleza do caos na mente de Marco Dutra
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Dutra filma o fim do mundo como quem filma uma ressaca. Há uma melancolia entorpecida em cada gesto, mas também um humor sarcástico que se infiltra nos momentos mais trágicos. Essa ironia é o que mantém o espectador em movimento, mesmo quando o filme parece se perder em suas próprias ambições. A montagem, assinada por Bruno Lasevicius, reflete esse espírito fragmentado. As transições de cena são abruptas, por vezes desorientadoras, e o filme parece deliberadamente desinteressado em estabelecer uma lógica narrativa convencional. Essa estrutura caótica não é gratuita – ela espelha o próprio estado mental de Edgar Wilson, um homem que vaga entre a lucidez e a possessão, entre a fé e a apatia.

É fácil enxergar Enterre Seus Mortos como um projeto “grande demais para caber em si”, e talvez seja mesmo. Mas é justamente nesse excesso que mora sua força. Dutra parece fascinado com as possibilidades técnicas e visuais à sua disposição – e faz questão de explorá-las até o limite. Há uma energia quase juvenil no modo como ele manipula efeitos práticos, som e design de produção. O som, aliás, merece destaque; ruídos metálicos, sussurros e explosões distantes se misturam em uma paisagem sonora que parece sempre prestes a desabar. Essa densidade auditiva amplia o desconforto e a sensação de que algo está prestes a acontecer – ainda que nunca aconteça de fato.

Os personagens se movem nesse universo com um tipo de resignação que é, paradoxalmente, o que os torna tão vivos. Selton Mello entrega uma das atuações mais interessantes de sua carreira recente. Seu Edgar é um homem destituído de heroísmo, uma figura que carrega o absurdo com o mesmo tédio de quem carrega um balde. A voz rouca e o olhar perdido constroem um retrato de alguém que desistiu de buscar sentido, mas ainda não conseguiu parar de sentir. Já Marjorie Estiano oferece o contraponto emocional perfeito. Nete é uma mulher que ainda acredita, ainda ama, ainda tenta compreender, mesmo quando o mundo se torna irreconhecível. A química entre os dois cria momentos de humor inesperado, como quando ela canta “My Heart Will Go On” para acalmá-lo – um gesto que seria ridículo se não fosse tão humano.

É curioso como Dutra transforma o que poderia ser um drama apocalíptico solene em uma tragicomédia sobre a persistência do cotidiano. Ele parece entender que o fim do mundo não acontece com explosões e gritos, mas com silêncio e indiferença. As pessoas continuam bebendo, discutindo, limpando estradas. Claro, há algo de profundamente brasileiro nessa abordagem; o riso diante da catástrofe, o caos como estado natural das coisas. Ao mesmo tempo, o diretor injeta uma ambição estética rara, dialogando com o horror lovecraftiano e o surrealismo de Panos Cosmatos, sem nunca perder de vista o caráter popular do cinema nacional.

Crítica | Enterre Seus Mortos: A beleza do caos na mente de Marco Dutra
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É verdade que o filme se perde, por vezes, em suas próprias camadas. O roteiro tenta amarrar pontas que talvez não precisassem ser amarradas, e o terceiro ato, embora visualmente potente, sofre com a dispersão das ideias. Ainda assim, há uma coerência emocional que ampara o espectador. Mesmo quando não compreendemos tudo o que acontece, sentimos o que está em jogo – e é isso que diferencia uma experiência sensorial de um mero quebra-cabeça narrativo.

Enterre Seus Mortos é, acima de tudo, uma aposta no risco. Um filme que acredita no poder do cinema de gênero como ferramenta para pensar o presente, sem abrir mão da experimentação formal. Marco Dutra não teme o fracasso – e talvez por isso alcance momentos de brilho tão singulares. Entre o grotesco e o sublime, ele constrói um universo onde a ruína é bela e o absurdo, inevitável. Ao fim, quando as pedras caem do céu e os personagens seguem indiferentes, há uma estranha serenidade na imagem. Como se o apocalipse fosse apenas mais um dia comum.

É essa contradição – entre a ambição e a exaustão, o caos e o lirismo – que torna Enterre Seus Mortos uma experiência tão singular. Um filme que erra muito, acerta muito, mas nunca deixa de existir por inteiro. Num cinema cada vez mais pautado pela contenção, Marco Dutra prefere o delírio. E, sinceramente, é revigorante ver alguém que ainda acredita no poder do cinema de se perder.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.