Crítica | Entre Dois Mundos trabalha a ilusão do olhar privilegiado
Madman Films/Divulgação

Crítica | Entre Dois Mundos trabalha a ilusão do olhar privilegiado

Juliette Binoche, com sua presença magnética e habilidade de transformar até o mais banal dos diálogos em algo carregado de subtexto, é o farol que guia Entre Dois Mundos. Mas nem mesmo sua atuação refinada consegue esconder as contradições que permeiam o filme de Emmanuel Carrère. Baseado no livro de Florence Aubenas, a obra tenta equilibrar-se entre a denúncia social e a autorreflexão sobre o privilégio de quem observa a pobreza de fora – e, no processo, acaba escorregando em suas próprias limitações.

O longa acompanha Marianne (Binoche), uma escritora que se infiltra no mundo das trabalhadoras de limpeza precarizadas na região portuária da França. Seu objetivo? Vivenciar a realidade delas para escrever um livro. O problema? O filme nunca decide se quer ser um retrato cru dessas mulheres ou um estudo sobre a culpa burguesa de quem as observa. Essa ambiguidade, que poderia ser rica, acaba diluindo o impacto da narrativa. Carrère opta por um tom quase documental, com câmeras discretas e planos que capturam o cansaço nos rostos das faxineiras, mas falha em mergulhar verdadeiramente em suas vidas.

A fotografia de Patrick Blossier reforça essa dualidade. Os tons frios e acinzentados das cenas de trabalho contrastam com os interiores mais quentes dos momentos de descontração entre as mulheres. Há uma clara intenção de destacar a frieza do sistema que as explora, mas também a humanidade que resiste nele. No entanto, essa escolha visual, embora eficaz, não é suficiente para compensar a superficialidade do roteiro. A montagem, por sua vez, é funcional, sem grandes ousadias, mantendo um ritmo que oscila entre o contemplativo e o arrastado – especialmente na primeira metade, onde a falta de conflito mais palpável pode testar a paciência do espectador.

O maior trunfo do filme está no elenco de não atores, que trazem uma autenticidade inegável às cenas. Hélène Lambert, no papel da combativa Chrystèle, rouba a cena sempre que aparece, com uma presença ímpar que faz questionar por que a história não é dela. É justamente aí que reside a maior contradição de Entre Dois Mundos: enquanto Marianne observa, Chrystèle vive. Enquanto a primeira tem suas motivações escondidas sob camadas de ambiguidade (até mesmo para o público), a segunda é retratada com uma crueza que a torna muito mais interessante. O filme parece consciente disso, mas não tem coragem de abandonar o conforto do olhar privilegiado.

Crítica | Entre Dois Mundos trabalha a ilusão do olhar privilegiado
Madman Films/Divulgação

Binoche, é claro, está impecável. Seu rosto é um mapa de microexpressões que revelam culpa, curiosidade e uma certa distância emocional. Há uma cena particularmente poderosa em que Marianne, após meses convivendo com as mulheres, finalmente revela sua verdadeira identidade. A reação delas – um misto de traição e resignação – é um dos poucos momentos em que o filme enfrenta de fato o dilema ético que propõe. Mas, como um todo, a narrativa parece mais interessada em mostrar a pobreza do que em questionar as estruturas que a perpetuam – ou o papel de quem a consome como espetáculo.

Carrère, conhecido por seus trabalhos literários e cinematográficos que exploram a fronteira entre realidade e ficção, parece hesitar em assumir um posicionamento mais incisivo. O filme levanta questões importantes: até que ponto a empatia performática da classe média realmente ajuda? Qual o limite entre documentar e explorar? Mas evita respostas mais contundentes, preferindo um final aberto que, embora poeticamente eficaz, soa como um aceno fácil para não desagradar.

Entre Dois Mundos tem momentos de genuína beleza e uma honestidade admirável em retratar a rotina exaustiva das trabalhadoras. Mas peca por não ir além do óbvio. Sua maior falha é acreditar que basta colocar uma protagonista privilegiada em meio à pobreza para que a crítica social se sustente por si só. O resultado é um filme que, apesar de bem-intencionado, acaba perpetuando a mesma dinâmica que pretende questionar: a de que a miséria alheia é, antes de tudo, um objeto de estudo para quem está de fora.

No fim, o que fica não é a voz das mulheres que limpam, mas o silêncio confortável de quem as observa – e aí reside a ironia mais amarga de Entre Dois Mundos.

Leia outras críticas:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.