Crítica | Entre Montanhas: um casal se aventurando em um desfiladeiro de gêneros
Apple TV+/Divulgação

Crítica | Entre Montanhas: um casal se aventurando em um desfiladeiro de gêneros

Imagine que você está assistindo a um filme. Ele começa como uma comédia romântica leve, com dois protagonistas trocando olhares e mensagens fofas através de um abismo. De repente, sem aviso prévio, o filme muda, como se alguém tivesse trocado de canal da TV, aí você se depara com um thriller de ação com monstros, zumbis e explosões. Agora, imagine que, no meio disso tudo, alguém resolveu jogar um pouco de drama existencial e uma pitada de ficção científica. Parece confuso? Pois é exatamente essa a sensação que Entre Montanhas proporciona. Dirigido por Scott Derrickson, o filme tenta ser muitas coisas ao mesmo tempo, mas acaba se perdendo em sua própria ambição. É como se o roteiro tivesse sido escrito por alguém que não conseguia decidir o que queria para o jantar e acabou pedindo tudo do cardápio. O resultado? Um prato cheio de sabores que não combinam entre si.

A premissa, sejamos justos, é intrigante. Um desfiladeiro misterioso, escondido em algum lugar remoto — talvez na Noruega, talvez na Rússia, talvez em Nárnia —, é vigiado por dois atiradores de elite. Eles estão lá para garantir que “o que quer que esteja lá embaixo” não escape. A ideia tem potencial para uma narrativa tensa e cheia de suspense, mas o filme parece mais interessado em explorar a dinâmica entre os dois protagonistas, Levi Kane (Miles Teller) e Drasa (Anya Taylor-Joy), do que em mergulhar de fato no mistério do desfiladeiro. E aqui começa o primeiro problema: o filme não sabe se quer ser um romance ou um thriller de ação com monstros. A transição entre esses gêneros é tão abrupta que parece que você está assistindo a dois filmes diferentes, mas com os mesmos atores. É como se alguém tivesse pegado “Simplesmente Acontece” e “Aniquilação”, colocado no liquidificador e servido sem coar.

Miles Teller e Anya Taylor-Joy, é preciso reconhecer, têm química suficiente para carregar o filme nas costas. Teller, com sua vibe de soldado cansado e introspectivo, e Taylor-Joy, com seu charme e energia contagiante, conseguem criar momentos genuinamente cativantes. A cena em que eles se comunicam através de mensagens escritas em placas, enquanto estão em lados opostos do desfiladeiro, é um dos pontos altos do filme.

É fofo, é divertido, e funciona. Mas, assim como um relacionamento à distância, o filme começa a perder o fôlego quando tenta introduzir elementos que não combinam com o tom inicial. De repente, estamos diante de criaturas CGI que parecem ter saído de um jogo de videogame dos anos 2000, e o romance dá lugar a cenas de ação que, embora bem coreografadas, parecem desconectadas do resto da história.

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E aqui chegamos a um dos principais problemas de Entre Montanhas: a falta de coesão narrativa. O filme começa com uma atmosfera de suspense e mistério, mas rapidamente abandona essa linha para se tornar uma comédia romântica. Quando você finalmente se acostuma com o tom leve e divertido, ele muda novamente, desta vez para um filme de ação com monstros e explosões. É como se o diretor Scott Derrickson tivesse decidido jogar todos os gêneros que gosta em um único filme, sem se preocupar em como eles se encaixariam. O resultado é uma experiência cinematográfica que, embora tenha momentos brilhantes, acaba se sentindo desconexa e desorientadora.

Um dos problemas mais evidentes em Entre Montanhas é a fotografia escura e a paleta de cores excessivamente sombria, que não só dificulta a visualização de algumas cenas, como também contribui para a sensação de que o filme é genérico e sem identidade visual própria. A iluminação mal trabalhada e a falta de contraste tornam tudo monótono, como se o desfiladeiro e seus mistérios fossem apenas um cenário esquecido.

Além disso, o roteiro cai na armadilha típica das produções de streaming: diálogos explicativos demais, como se o filme precisasse justificar cada detalhe para um público que pode estar dividindo a atenção com o celular. O resultado é uma experiência que, em vez de imersiva, parece feita para ser consumida de forma superficial.

Crítica | Entre Montanhas: um casal se aventurando em um desfiladeiro de gêneros
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Um dos aspectos mais frustrantes do filme é o tratamento dado ao desfiladeiro em si. A ideia de um lugar misterioso, guardado por duas pessoas que não podem se comunicar, é fascinante. Poderia ter sido explorada de maneira muito mais profunda e no significado simbólico do desfiladeiro. Em vez disso, o filme opta por transformar o local em um mero pano de fundo para cenas de ação e momentos românticos.

O desfiladeiro, que deveria ser o coração da história, acaba sendo relegado a um papel secundário, apenas como um cenário. É como se o filme tivesse medo de mergulhar de verdade em sua própria premissa, preferindo ficar na superfície e brincar com elementos mais convencionais.

A trilha sonora, composta pela excelente dupla Trent Reznor & Atticus Ross, é um dos poucos elementos que conseguem manter uma certa consistência ao longo do filme. A música é atmosférica, sombria e cheia de camadas, criando um contraste interessante com a narrativa muitas vezes confusa. Em alguns momentos, a trilha parece carregar mais peso emocional do que o próprio roteiro. É uma pena que o filme não tenha aproveitado melhor esse recurso para criar uma experiência mais coesa e impactante.

Outro ponto que merece destaque é o design das criaturas. Embora os monstros sejam, em sua maioria, genéricos e sem muita personalidade, há alguns momentos em que o design realmente impressiona. Uma cena em particular, em que os protagonistas usam um guincho de veículo para subir o desfiladeiro enquanto são perseguidos por uma criatura, é visualmente impressionante e cheia de tensão. No entanto, esses momentos são poucos e distantes entre si, e acabam sendo ofuscados pela falta de desenvolvimento narrativo.

No fim das contas, Entre Montanhas é um filme que tenta ser muitas coisas ao mesmo tempo, mas acaba não sendo nada de forma satisfatória. Temos uma premissa interessante, dois protagonistas carismáticos, uma trilha sonora incrível e alguns vislumbres de criatividade visual. No entanto, a falta de foco narrativo e a constante mudança de tom acabam minando o potencial do filme.

É como se o diretor tivesse pegado uma lista de coisas que gosta — romance, ação, monstros, drama existencial — e decidido colocá-las todas em um único filme, sem se preocupar em como elas se encaixariam. O resultado é uma experiência que, embora tenha momentos brilhantes, acaba se sentindo mais como uma colcha de retalhos do que como uma narrativa coesa.

E aqui entra a comparação inevitável com o obscuro filme nacional “Zoando na TV”, estrelado por Angélica, Márcio Garcia e Miguel Falabella. No filme, os personagens usam o recurso de zapear canais diferentes para transicionar entre gêneros e cenários, mantendo o mesmo elenco.

Zoando na TV
Globo Filmes/Divulgação

A diferença é que, em Zoando na TV, a mudança de gêneros é proposital e feita com humor, funcionando como uma sátira à televisão e à cultura po. Já em Entre Montanhas, a transição entre gêneros parece mais um acidente de percurso, como se o diretor tivesse perdido o controle remoto.

Entre Montanhas está disponível na Apple TV+.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.