Crítica | Entrevista com o Demônio: existe algo mais assustador do que uma estrela de TV?

Crítica | Entrevista com o Demônio: existe algo mais assustador do que uma estrela de TV?

Existe algum cenário em que Entrevista com o Demônio poderia ter cumprido sua promessa? Eu, particularmente, não vejo isso acontecendo. Ambientado em 1977, o filme imagina uma suposta quarta rede de transmissão comercial — na época havia apenas três — e então imagina-se um concorrente emergindo para destronar o rei dos talk shows noturnos dos anos 1970, Johnny Carson. O rival é Jack Delroy (David Dastmalchian), um apresentador de talk show local de Chicago que foi promovido ao nível nacional. Esse pano de fundo e mais são explicados em um longo prólogo de cerca de cinco minutos, que inclui um fato biográfico chave que vou deixar de fora aqui, porque uma vez que você o ouve, consegue prever o final a 81 minutos de distância. Basta dizer que Jack está no ar há seis temporadas e suas audiências nunca superaram as de Carson, embora ele tenha chegado perto uma vez.

Entrevista com o Demônio: topa tudo por audiência

Então vem a semana das avaliações, um evento trimestral em que a empresa de classificação Nielsen — líder mundial em medição, dados e análises de audiência — , molda o futuro da mídia de forma mercadológica, de quanto as redes podem cobrar pelo tempo de exibição para seus patrocinadores. Nesse contexto, as redes tentam aumentar os números transmitindo seus programas mais grandiosos e escandalosos. Jack e seu produtor escorregadio Leo (Josh Quong Tart), que poderia ser o irmão do advogado viciado em cocaína de Sean Penn em “O Pagamento Final”, têm feito transmissões de Halloween com temas sobrenaturais e concursos de fantasias por anos. Eles decidem elevar o nível convidando um pacote de convidados com temas interligados.

Um deles é um psíquico conhecido como Christou (Fayssal Bazzi), que faz uma rotina de mentalismo, adivinhando fatos sobre a plateia de uma maneira que parece bem fraudulenta. Outro é Carmichael, o Ilusionista (Ian Bliss), um tipo de “desmascarador sobrenatural”, que rapidamente explica como Christou pode ter enganado a audiência para que acreditasse que ele tinha habilidades paranormais. Depois vem o ponto alto da noite: a parapsicóloga best-seller Dra. June Ross-Mitchell (Laura Gordon) entrevista Lilly (Ingrid Torelli), a única sobrevivente de um suicídio coletivo de uma seita satânica durante um confronto com a polícia. As coisas ficam mais estranhas e repugnantes a partir daí, e não há como negar que os cineastas australianos Colin e Cameron Cairnes e sua equipe talentosa se esforçaram na produção, especialmente nos efeitos práticos viscosos.

Crítica | Entrevista com o Demônio: existe algo mais assustador do que uma estrela de TV?

Mas Entrevista com o Demônio se atrapalha e tropeça em si repetidamente. A insistência desde o início de que é um filme de “filmagem encontrada” baseada em uma transmissão enterrada cria instantaneamente expectativas irreais para tudo o que se segue. Este é um filme que basicamente faz o que quer, quando quer, e não sente muita pressão para seguir as convenções visuais dos talk shows noturnos americanos de 1977, que podem ser facilmente pesquisadas e emuladas graças ao YouTube. Para ser justo, no entanto, vi muito poucos filmes de “filmagem encontrada” que realmente parecem filmagens que foram encontradas. Quase todos eles trapaceiam tanto que você se pergunta por que alguém quer fazer esse tipo de filme em primeiro lugar.

O prólogo também me parece um erro porque enquadra o resto do filme como algo que você tem que atravessar para chegar ao final que você já sabe que está vindo, baseado no próprio prólogo, enquanto que simplesmente apresentar a transmissão em si, sem explicação, como um artefato, teria lançado o público no fundo da piscina e criado um senso de mistério ao longo do filme, enquanto todos os pontos importantes da trama eram comunicados organicamente, dentro do contexto da transmissão — as pessoas falam com Jack no ar sobre o que aconteceu nos anos anteriores a esse desastre, e isso é muito bem feito; soa como o que as pessoas em um programa de TV realmente diriam a alguém na sua situação. Existem também alguns momentos “nos bastidores”, aparentemente filmados de forma improvisada pelos cinegrafistas da rede no palco, que levantam a questão de por que não apenas um, mas dois cinegrafistas decidiram fazer um documentário clandestino sobre este evento, e como as filmagens acabaram sendo editadas junto com os trechos que foram originalmente destinados à transmissão. Alguém cortou tudo no estilo de um filme dramático, depois escondeu essa fita master no cofre com o título “OBJETO AMALDIÇOADO, POR FAVOR, NÃO ABRA”?

Os tiques estilísticos de filmagem encontrada e outros sinais de “realismo” levantam a questão de por que alguém na plateia do estúdio permaneceu após um dos convidados vomitar violentamente algo que parecia o lodo negro, como a simbiose dos filmes “Venom”?

Dastmalchian está muito bem como Jack, especialmente em momentos de vulnerabilidade e autoengano, mas não vejo exatamente a performance de estrela que alguns dos meus colegas notaram, principalmente porque não o achei plausível como um cara que ascendeu à proeminência nacional no circuito dos talk shows noturnos por ser hilário. Ele lê piadas de monólogo e faz conversas de mesa que deveriam ser hilárias, e ouvimos a plateia rindo, mas isso é o filme dizendo que ele é engraçado, o que não é a mesma coisa que ele ser realmente engraçado; a plateia também riu das piadas de Robert DeNiro em “Coringa”, e por toda a sua genialidade camaleônica, DeNiro era tão engraçado quanto uma batata naquele papel. O que é outra maneira de dizer que a performance funciona como drama, mas não de um modo que venda a ideia central de que alguém acreditava nesse cara como um jovem talento que poderia destronar Johnny Carson — que nem conheço, sejamos justos.

Crítica | Entrevista com o Demônio: existe algo mais assustador do que uma estrela de TV?

Ainda assim, não há como questionar a originalidade da ideia e da atmosfera, quer você ache que o filme consegue dar conta de tudo ou não. Eu ficaria feliz em folhear um livro de mesa de centro em grande formato com quadros congelados deste filme. É ricamente imaginado, e você pode perceber que todos se divertiram imersos nesse mundo estranho e muitas vezes perturbador. Entrevista com o Demônio não parece exatamente 1977, especialmente o uso infeliz de fundo gerada por IA, que praticamente grita “modas tecnológicas do século XXI”. Mas o filme certamente diz “os anos 70” de uma forma geral, particularmente na iluminação do diretor de fotografia Matthew Temple — embora alguns dos movimentos de câmera sejam distraidamente pós-Scorsese em “Os Bons Companheiros”; nas roupas do público pelo figurinista Steph Hooke; e na tipografia usada nos créditos do programa (o designer de produção é Otello Stolfo).

E há uma aura suja e gananciosa envolvendo tudo, que eu lembro vividamente da minha própria infância no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Assistindo programas locais que se vendiam por meio de humilhação de anões como animadores de palco, violência policial, tudo isso embalado por cantores de brega tocando as mais dançantes com um teclado Yamaha de baixa qualidade.

No fim das contas, mesmo como um exercício ostensivo de trapaça de imagens encontradas, Entrevista com o Demônio é uma viagem divertida, embora nada assustadora, por uma noite fatídica com um apresentador de talk show e seus infelizes convidados. Mas eu ainda tenho mais medo da programação local e “Bandidos na TV” é a prova disso.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.