Crítica | Extermínio: A Evolução usa o apocalipse zumbi como metáfora ao Brexit
Sony Pictures/Divulgação

Crítica | Extermínio: A Evolução usa o apocalipse zumbi como metáfora ao Brexit

Quase três décadas após revolucionar o cinema de zumbis com “Extermínio”, em 2002, a dupla Danny Boyle e Alex Garland regressa à franquia com Extermínio: A Evolução. O novo filme não só revive a violência visceral do original, mas também mergulha em águas políticas turbulentas. A Evolução é um exercício de alegoria contundente: uma Inglaterra sitiada por 28 anos por uma praga de infectados raivosos, isolada do mundo por quarentenas impenetráveis. A conexão com o Brexit – a saída do Reino Unido da União Europeia – é intencional e explícita. Contudo, o que poderia ser um material para um tipo de crítica interna, é, na verdade, um retrato autocomiserativo da nação como eterna vítima, um “coitadismo” que mina a complexidade do debate que tenciona provocar.

A Inglaterra de Boyle é um território congelado no trauma. Comunidades sobrevivem em enclaves fortificados, repetindo rituais de sobrevivência enquanto os infectados – agora evoluídos em variantes como os obesos rastejantes e os letais “Alfas” – dominam o exterior. O isolamento geográfico é a espinha dorsal da narrativa, reforçado por planos obsessivos da bandeira britânica (incluindo sua queima ritualística). Esta não é apenas uma quarentena sanitária; é uma metáfora sobre o isolamento político e cultural pós-UE. O filme insiste: os ingleses estão sozinhos, abandonados, lutando contra monstros que eles mesmos criaram. Mas voltamos mais tarde para falar sobre isso.

O coração narrativo gira em torno de Spike (Alfie Williams), um adolescente que atravessa territórios perigosos para salvar sua mãe, Isla (Jodie Comer). Encontra auxílio num médico enigmático (Ralph Fiennes), cuja excentricidade esconde um núcleo humanista. A estrutura de “viagem em território hostil” funciona, emprestando tensão palpável às sequências de ação – especialmente quando arcos e flechas substituem armas de fogo, exigindo precisão mortal dos protagonistas. Contudo, Spike é repetidamente salvo por conveniências do roteiro, enfraquecendo sua jornada. Sua sobrevivência parece menos uma conquista e mais um capricho narrativo, especialmente num clímax que beira o fantástico, desafiando as próprias regras do universo estabelecido.

Aaron Taylor-Johnson como Jamie (pai de Spike) personifica outro problema. Sua presença reduz-se a exposição didática: explica mutações, demonstra táticas de sobrevivência, e reforça normas da comunidade. É um personagem-tutorial, não um pai ou marido complexo. Seu personagem, totalmente funcional, sintetiza o problema central de A Extinção muitas ideias, pouca execução.

Crítica | Extermínio: A Evolução usa o apocalipse zumbi como metáfora ao Brexit
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Algo parecido acontece quando Erik (Edvin Ryding) aparece na trama. Ele é o único sobrevivente de um grupo de soldados suecos que acaba parando na zona de quarentena. Mesmo que com pouco tempo de tela, seu personagem e seus momentos com os protagonistas, são alguns dos melhores do filme. Erik está assustado, mas também curioso. Ele se espanta com o atraso tecnológico dos ingleses e cria uma dinâmica até mesmo divertida com Spike, onde boas piadas surgem a partir desse encontro.

Aqui, Boyle e Garland quase acertam o alvo. Erik é uma representação a Europa que seguiu em frente. Ele espelha o olhar externo sobre o Brexit: a incompreensão perante uma nação que escolheu o isolamento como identidade. É uma pena que sua aparição seja tão breve.

É impossível ignorar o elefante na sala: Extermínio: A Evolução é um manifesto sobre o Brexit. A Inglaterra sitiada é a Inglaterra pós-UE – orgulhosa de sua independência, mas definhando em autossuficiência tóxica. O problema não está na metáfora, mas na sua execução unilateral. O roteiro pinta os britânicos exclusivamente como vítimas passivas: sofrem com a praga, com a falta de recursos, com a ausência de ajuda externa. Não há reflexão sobre as escolhas que levaram ao isolamento, nem autocrítica sobre o nacionalismo que alimentou a crise.

Pior ainda são os Alfas. Estas criaturas evoluídas, mais inteligentes e organizadas, são mostradas como invasores externos que “infiltram” comunidades. A associação visual e narrativa com imigrantes ou forças estrangeiras é perturbadoramente clara. Se intencional (e, dado o histórico de Garland, é plausível), é uma metáfora perigosa que ecoa retóricas xenófobas.

Ok, mas estamos falando de um filme de zumbis e tem gente que não está nem um pouco interessada nos subtextos. Bom, nesse aspecto, A Evolução ainda é um bom filme de ação e tensão. Boyle segue mestre na coreografia do caos. Sequências de fuga são dirigidas com um ritmo frenético e claustrofóbico, usando a paisagem nublada do norte inglês como personagem. A fotografia captura tons de cinza e verde podre, enfatizando a decadência.

Contudo, escolhas técnicas questionáveis surgem: o uso de filmagens com celulares para cenas específicas. Estas inserções – que ficam bem evidentes em cenas puramente de assassinatos – não servem à narrativa nem ao estilo visual geral. Parecem um aceno nostálgico ao estilo “amador” do primeiro filme, mas soam como artifícios gratuitos, sem justificativa temática ou emocional. São caprichos que expõem as costuras do filme.

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Após ter assistido os dois filmes anteriores em pouco tempo, acredito que Extermínio: A Evolução está mais próximo de seu antecessor do que do primeiro longa da franquia, apesar de sua equipe criativa. É um filme tecnicamente competente, com sequências de ação eletrizantes e uma atmosfera de desespero bem construída. Ralph Fiennes e Jodie Comer entregam performances sólidas dentro dos limites de seus papéis enquanto, Taylor-Johnson e Alfie Williams parecem estar um tom abaixo.

Crítica | Extermínio: A Evolução usa o apocalipse zumbi como metáfora ao Brexit
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No fim, Extermínio: A Evolução é um filme que tenta ser duas coisas: um thriller pós-apocalíptico eficiente e uma crítica política contundente. Se consegue o primeiro, falha no segundo. Boyle e Garland criam uma narrativa que, em vez de questionar o isolamento britânico, o romanticiza como uma tragédia inevitável, reforçando a ideia de que a Inglaterra está sozinha porque o mundo a abandonou – nunca porque ela mesma escolheu se fechar. O verdadeiro vírus aqui não é a praga zumbi, mas a recusa em olhar para dentro e perguntar: “E se fomos nós que queimamos as pontes?”. A resposta, como a bandeira britânica no filme, acaba reduzida a cinzas.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.