Mulher, negra, semianalfabeta e catadora de papelão. Carolina Maria de Jesus se tornou uma das escritoras mais lidas do Brasil quando, em 1960, lançou seu primeiro livro com auxílio do jornalista Audálio Dantas. “Quarto de Despejo” é um compilado de relatos escritos do diário de Maria. Nas páginas do caderno ela escreveu sobre sua sofrida vida de mãe-solo de três filhos em na periferia de São Paulo.
Além do diário, Maria também tinha um grande acervo de contos e poesias. Para seu segundo livro ela queria publicá-los, visto que agora era conhecida como uma escritora de vende bem, era queria fazer literatura artístico-ficcional. No entanto, os editores não gostaram da ideia, afinal, uma mulher preta e pobre só pode escrever sobre sua vivência. Com isso, seu segundo livro foi “Casa de Alvenaria”, relatando justamente a pequena ascensão social que teve após o sucesso do primeiro livro, quando ela e seus filhos saíram da periferia e passaram a morar numa casa de alvenaria na cidade de Osasco.
O problema de Ficção Americana
Ficção Americana, filme de estreia de Cord Jefferson, conta a história de Thelonious “Monk” Ellison (Jeffrey Wright), um escritor e professor universitário super qualificado e frustrado; portanto, ele não tem tempo para os bons-mocismos. Sua acidez o afasta do magistério e o coloca em uma sinuca de bico: ter de reinventar a carreira falida, mesmo que tudo que o mercado quer são as mesmas histórias de miséria e sofrimento no que diz respeito à experiência negra. Monk a Carolina Maria de Jesus vêm de vivências e realidades completamente diferentes, mas ocupam o mesmo espaço nas livrarias: a literatura negra.
Antes de aprofundar nesta análise, quero fazer minha primeira e única grande crítica a adaptação que Jefferson fez do livro “Erasure”: seu título. Ficção Americana dá a entender que essa incrível sátira só pode ser lida para a vivência de afro-americanos, sendo que, na verdade, sua abrangência é gigantesca, causando pontos de identificação até por quem vos escreve, um homem negro, nascido na Amazônia e de origem pobre, que decidiu estudar e escrever sobre as subjetividades de obras cinematográficas.
Agora, voltando ao filme, o roteiro de Ficção Americana amarra uma narrativa que mistura a comédia e a tragédia para contar a história de Thelonious, que ao ser afastado de seu emprego, é forçado a se reencontrar com sua família após um longo período afastado.
Os traumas familiares estão presentes durante o filme, mesmo quando não há a presença de certos parentes. Devido a essa carga familiar, a obra explora narrativas bastante comoventes e ao mesmo tempo usa piadas que deixam a experiência do espectador interessante e tornando a aquela dinâmica familiar muito crível.
Em conjunto com um roteiro brilhante, com um texto afiado, cheio de diálogos que vão do extremamente real e tocante, para a sátira pastelona – sobretudo nos personagens brancos do longa -, o elenco complementa esse trabalho, fazendo das duas horas mais curtas que passei assistindo um longa-metragem em muito tempo.
Elenco
Jeffrey Wright tem a missão de interpretar um protagonista infeliz com a vida, devido a sua aversão a literatura “popular” o personagem se torna desagrádavel e afasta os que estão ao seu lado. No momento de maior revolta do personagem, acontece a virada de chave do filme, onde ele escreve uma sátira que representa o motivo de sua insatisfação com a indústria.
Sterling K. Brown interpreta Cliff, irmão de Monk, diferente de seus papéis mais famosos, no seriado “This Is Us” e no filme “As Ondas”, aqui o ator vive alguém que está passando por grandes mudanças já na fase adulta e foge de suas responsabilidades. Ele parece a personificação do caos, no melhor dos sentidos, porque, nos poucos momentos que aparece, ele toma o filme para si.
Ainda com menos tempo de tela, Issa Rae (Sintara) tem um impacto narrativo que compõe partes importantes do filme, sendo bem mais que uma representação do que a indústria quer de negros. Ela é inteligente, consciente e só está jogando o jogo do capitalismo. Os momentos de destaque da atriz chamam atenção e geram reflexões tanto no personagem de Jeffrey quanto nos espectadores.
Diversidade negra e drama familiar
Outro fator fundamental do elenco se dá pela diversidade dentro da comunidade negra. Monk, vindo do universo acadêmico praticamente performa uma branquitude – lembrando o saudoso Carlton Banks, de um Maluco no Pedaço -, enquanto seus irmãos, mesmo vindo do mesmo berço e criação de uma família de classe média alta, compõe personalidades completamente diferentes.
Esse drama familiar particular de Monk acaba se tornando uma inspiração involuntária para o livro-protesto que ele escreve, onde o protagonista do livro, que é um amontoado de estereótipos dos dramas vividos por afro-americanos, mata o pai ausente.
Existe um sentimento de agonia, sobretudo para o público negro, quando acompanhamos o processo de publicação do livro, que infamemente, se chama “Porra”. Os editores, os marketeiros, a imprensa e até mesmo a crítica literária. Todo preto que lida com arte, em algum nível, já se deparou com personalidades ou frases ditas por esses personagens brancos.
Direção simplista, mas segura
Se o coração do filme está na junção de roteiro e atuações, a cinematografia do filme, por sua vez, é bastante tímida, mas eficiente para a história que tem que contar.
Planos abertos e americanos compõe a maioria dos enquadramentos das cenas do longa. A cidade de Boston praticamente não tem destaque, mesmo que narrativamente, ela tenha impacto na história dos personagens.
Nesses aspectos mais técnicos conseguimos notar a inexperiência de Cord Jefferson na direção. Ele preferiu jogar no seguro porque sabia o poder do seu texto. E para a história que tinha para contar, ela era o suficiente.
Ele atingiu a todos, inclusive negros
Por fim, um aspecto muito rico da experiência de Ficção Americana é que ele se desafia enquanto uma obra que satiriza, critica, mas não é um filme que quer dialogar com pretos ativistas e brancos antirracistas. A arrogância do protagonista é extremamente incômoda porque, ao mesmo tempo, que tem pontos relevantes na sua crítica, ele se põe num pedestal acima de pretos comuns, como se a militância de raça não fosse importante. Os contrapostos dentro do longa são fundamentais para causar reflexão e discussão diante a esses aspectos.
Vencedor de Roteiro Adaptado no Oscar 2024, o texto provou seu ponto quando muitos dos críticos dizem sobre o filme. Embora num geral ele tenha sido super bem avaliado, não foi incomum ler que Ficção Americana “não é filme de Oscar”, que era um azarão na premiação, ou pior, que estava cumprindo cota.
Particularmente achei um ano excelente na temporada de premiações, com filmes muito bons, mas uma coisa tenho certeza, uma obra que sai do óbvio, é contestadora e prova seu ponto para a experiência além das salas de cinema, será muito mais marcante e importante que mais um drama de um sobre a dualidade de homem branco lidando com a culpa por um male que causa na humanidade.
Ficção Americana me pega em pontos muito pessoais, desde o questionamentos internos que já tive, se estava sendo negro o suficiente por frequentar lugares e ter gostos “muito brancos”, ao mesmo tempo que amplia o debate para o âmbito profissional e a crítica ao mercado artístico e suas imposições. O texto põe no alvo pretos politicamente ativistas e aqueles que acham isso uma grande bobagem, tudo isso de maneira leve e bastante acessível.
Seja Carolina Maria de Jesus, o crítico Carlos Alberto Jr, ou o ficciona Monk, Ficção Americana fala sobre todos nós, costurado no melhor roteiro escrito por um estadunidense nesta década. Independente do gênero e raça, o texto vai te atingir e essa é a maior força deste longa-metragem.
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