Começo a escrever este texto enquanto acompanho o noticiário que atualiza o número de mortos em mais uma operação policial no Rio de Janeiro – mais de sessenta pessoas até agora. É impossível não pensar em como a violência, mesmo quando institucionalizada ou disfarçada de “acidente”, se torna parte da rotina. Nesse contexto, assistir a Foi Apenas um Acidente, novo longa de Jafar Panahi, é inevitavelmente um exercício de confronto: com o outro, com o Estado, e principalmente consigo mesmo. Porque Panahi, mais do que um cineasta, é alguém que transformou o cinema em sua forma mais concreta de sobrevivência.
Desde que foi proibido de filmar e condenado a permanecer sob vigilância pelo regime iraniano, Panahi tem feito de cada obra um gesto político de resistência, e Foi Apenas um Acidente, vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2025, talvez seja a mais dolorosamente humana afirmação até agora. O filme é sobre o que resta quando a justiça é sequestrada pelo poder e quando o desejo de vingança parece ser o único caminho possível para recuperar algo da dignidade perdida.
A história começa em uma estrada escura, onde um casal e sua filha pequena voltam para casa depois de uma celebração. O carro, conduzido por Eghbal (Ebrahim Azizi), atropela um cachorro que surge repentinamente no caminho. A cena é filmada com sobriedade, sem trilha sonora dramática, apenas os sons noturnos e o impacto seco do corpo do animal. É um momento aparentemente banal, mas que desencadeia uma cadeia de eventos que transformará completamente a vida daquela família. A esposa, serena e resignada, consola a filha dizendo que “Deus quis assim”. Panahi já deixa claro, ali, que os seus personagens habitam um mundo em que a fatalidade é uma linguagem cotidiana.
O carro quebra poucos quilômetros adiante, e o casal para em uma pequena oficina. É ali que o mecânico Vahid (Vahid Mobasseri), ao ouvir o som metálico de uma prótese batendo no chão, acredita reconhecer o mesmo som que acompanhava o passo do homem que o torturou anos antes, quando era prisioneiro político. O que se segue é uma espiral moral que vai do trauma à obsessão, e do reconhecimento à dúvida.

A primeira virtude de Foi Apenas um Acidente está na maneira como Panahi conduz esse suspense sem recorrer a truques visuais ou cortes acelerados. A câmera de Amin Jafari, quase sempre à altura dos olhos, observa os personagens de forma quase documental, criando uma tensão constante entre o que se vê e o que se imagina. A fotografia aposta em contrastes fortes – luzes vermelhas e sombras densas – que evocam o cinema de Hitchcock, especialmente “Marnie, Confissões de uma Ladra”, citado de forma sutil na cena em que o rosto de Eghbal é banhado por um vermelho pulsante. Essa cor, que reaparece no desfecho, simboliza tanto a violência internalizada quanto a impossibilidade de apagá-la.
O trabalho de Amir Etminan na montagem é igualmente fundamental. Há uma fluidez na transição entre o drama e o humor que surpreende, sem quebrar a tensão. Panahi sabe que a tragédia e o riso muitas vezes nascem do mesmo lugar. As cenas em que o grupo de ex-prisioneiros discute o destino do suposto torturador dentro da van, enquanto o veículo quebra ou é empurrado por uma noiva ainda vestida de branco, têm algo de tragicômico que seria impensável nas mãos de um diretor menos experiente. É nessa justaposição entre o absurdo e o real que o filme se torna ainda mais incisivo.

A partir do momento em que Vahid decide sequestrar Eghbal para confirmar sua identidade, o filme se transforma num retrato coral. Entram em cena figuras como Shiva (Mariam Afshari), fotógrafa que também foi presa política, e o casal Ali (Madj Panahi) e Goli (Hadis Pakbaten), ex-companheiros de cela. Cada um traz uma ferida e uma forma diferente de lidar com ela. O roteiro, assinado pelo próprio Panahi, aposta em diálogos longos e sobrepostos, repletos de interrupções e repetições. Essa aparente desorganização verbal é intencional: reproduz o caos de pessoas que, depois de tanto tempo oprimidas, tentam falar ao mesmo tempo, e, por fim, apenas se escutam por fragmentos.
O realismo de Panahi se manifesta, também, na construção do espaço. A van que carrega o suposto torturador escondido em uma caixa de madeira é, ao mesmo tempo, um veículo, uma prisão e uma metáfora. A cada quilômetro, os personagens se aproximam não só da verdade, mas de seus próprios limites morais. Quando um deles propõe matar o homem imediatamente e outro insiste em “não se igualar ao inimigo”, o espectador é convidado a refletir sobre até que ponto o desejo de justiça pode se transformar em repetição da violência.
Se em alguns momentos o roteiro se estende demais nos debates morais, gerando certa sensação de circularidade, Panahi compensa com uma mise-en-scène cuidadosa e uma direção de atores admirável. Mobasseri, no papel de Vahid, entrega uma performance contida, que oscila entre a raiva e o medo, sem nunca cair na caricatura. Sua expressão cansada carrega o peso de alguém que já foi quebrado e agora busca, em vão, reparar-se através da vingança. Já Azizi, como Eghbal, é uma presença ambígua: ao mesmo tempo arrogante e assustado, ele representa o dilema central do filme – o rosto da opressão que talvez nem seja quem imaginamos.
Um dos momentos mais potentes acontece no deserto, quando o grupo finalmente decide o que fazer com o homem. Em um longo plano sem cortes, Panahi mantém a câmera girando lentamente, acompanhando o deslocamento de cada personagem enquanto eles discutem, gesticulam, gritam. O sol inclemente, o vento que levanta poeira e o vazio da paisagem reforçam o isolamento moral em que todos se encontram. É uma cena que mostra o domínio técnico e narrativo de Panahi, capaz de criar tensão apenas com o movimento horizontal da câmera.
Mas Foi Apenas um Acidente não é apenas um filme sobre vingança. É também, e talvez sobretudo, um filme sobre memória e sobre como o passado se infiltra nas frestas do presente. As lembranças dos tempos de prisão aparecem nas conversas, nas cicatrizes, no medo silencioso diante de qualquer autoridade. Panahi nunca mostra a tortura em si, mas ela está em cada olhar, em cada pausa longa, em cada gesto hesitante. A violência, aqui, não é espetáculo; é fantasma.
A força do filme também vem de sua produção. Rodado em segredo, sob o risco constante de censura, o projeto carrega em si o próprio ato de resistência. Panahi filma dentro do Irã, sobre o Irã, contra o Irã oficial – e o faz com um domínio técnico que só se torna mais impressionante quando lembramos das limitações impostas a ele. O uso de poucos cenários, o aproveitamento da luz natural e o trabalho com não atores em papéis secundários ampliam o realismo e o senso de urgência. É um cinema feito com o corpo inteiro, consciente de que filmar, para o diretor, é tão vital quanto respirar.
Ainda que o desfecho possa dividir o público, o impacto emocional permanece. A imagem final, iluminada por aquele mesmo vermelho do início, fecha o ciclo de forma poética, sugerindo que nenhuma dor pode ser totalmente enterrada. E se há algo que Panahi entende melhor do que ninguém, é que o cinema serve justamente para manter as feridas abertas, não para cicatrizá-las.
Foi Apenas um Acidente se revela uma obra de coragem e lucidez. É um filme que discute o papel do artista em meio ao caos, mas também fala sobre nós, espectadores, que assistimos à barbárie cotidiana e seguimos em frente, talvez anestesiados. É lembrar que a guerra, como a violência de Estado, não acontece apenas lá fora. Ela está aqui, nas ruas, nas políticas, nos descasos, nas vidas ceifadas todos os dias — e também nas histórias que tentam sobreviver apesar disso. Panahi filma porque precisa, e nós assistimos porque, de algum modo, também precisamos.
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