Fúria Primitiva

Crítica | Fúria Primitiva: a odisseia boba e truqueira de Dev Patel

Old Boy, Danny Boyle (“Trainspotting – Sem Limites”), John Wick e Bollywood. Fúria Primitiva, filme de estreia de Dev Patel (“A Lenda do Cavaleiro Verde”) como diretor, é uma miscelânea de influências e referências. O filme é estiloso, há uma iconografia muito interessante – sobretudo quando o protagonista usa sua máscara de macaco – mas atormentado pelos problemas habituais de qualquer cineasta iniciante.

Com muita violência e uma câmera que percorre becos e mercados de rua das periferias de uma grande metrópole, o filme de estreia de Dev Patel, definitivamente, tem estilo. Fúria Primitiva é um projeto apaixonado que vem sendo desenvolvido há anos para Patel. Como um filme de vingança ele é bem efetivo; mas sua direção é desleixada por conta de sua pretensão e é excessivamente longo para algo com tão pouca substância.

A Fúria Primitiva de um ninguém

A história começa em um clube de luta underground em uma cidade fictícia que lembra a moderna Mumbai. Patel é um morador sem nome que leva surras – e ocasionalmente as distribui – para ganhar a vida. O clube é dirigido por um cara branco desprezível e arrogante conhecido como Tiger (Sharlto Copley), cujas conexões no mundo do crime da cidade são múltiplas, desde madames do crime, traficantes de drogas e até lutadores assassinos.

Por razões, inicialmente misteriosas, o protagonista consegue um emprego como ajudante de cozinha – e depois como garçom – para uma senhora perigosa que dirige uma boate de luxo. Flashbacks nos informam mais: a mãe do garoto (Adithi Kalkunte), junto com grande parte de sua aldeia, foi cruelmente assassinada em uma gananciosa apropriação de terras quando ele era apenas um menino, deixando cicatrizes literais e emocionais no personagem. Ele se torna um homem cuja a vida de miséria não lhe afeta desde que um dia consiga vingar sua mães e aldeões.

Todo o primeiro ato é bem didático e ágio. A intensão é até boa, mas a edição, somada a uma direção que parece tentar se provar “diferentona”, acaba dando contornos negativos e plásticos – a cena de transição de uma bolsa, passando de mão em mão, parece ter saído de uma peça publicitária – para algo bem interessante que vem se construindo por um – até então – bom e simples roteiro de construção de uma história de vingança. No entanto, o primeiro clímax acaba acontecendo muito cedo, tirando todo o peso do que estava por vir.

O problemão chamado John Wick

Chad Stahelski e David Leitch abalaram o cinema de ação em 2014 quando criaram a franquia John Wick. Com um ótimo trabalho de câmera, edição e coreografias. A dupla de diretores, que no passado foram dublês, mudaram o jogo e jogaram o sarrafo dos filmes de ação lá no alto. Alguns filmes até tentaram emular a “fórmula” de Johh Wick e, apesar de ter lá sua originalidade, Fúria Primitiva também é inspirado – e será comparado – com os filmes de ação estrelados por Keanu Reeves (“Matrix Resurrections”).

Patel é inegavelmente um ótimo ator dramático e entregou um bom personagem de ação – sua falta de força estereotipada torna o estilo de luta mais dinâmico e dançante, que ganha um certo contorno animalesco – e sim, uma série de facas – para realizar o trabalho. Seu rosto emotivo, que geralmente é utilizado pela ternura com seus olhos grandes, aqui ele é impassível. A testa franzida e até uma certa “falta de vida”, tornam o personagem um anjo vingador.

Se o ator se mostra uma ótima surpresa enquanto astro de ação, já como diretor não se pode dizer o mesmo. Evidentemente há muito que melhorar, mas sua pretensão não condiz com o que a história que ele mesmo construiu.

Jogando no seguro

Patel conecta a hipocrisia religiosa aos vilões de sua história. Esta rede de drogas e prostituição, pelo seu clube noturno, é secretamente liderada por um líder espiritual que tem laços profundos com o que parece ser uma campanha política fortemente televisionada. Tudo isso é bastante genérico, mas passável enquanto um filme de ação. No entanto, se torna problemático quando os – muitos – flashbacks justificam, repetidas vezes, os motivos de sua vingança.

Uma pena que tudo envolvendo lenda do deus hindu Hanuman – um híbrido símio-humano que protege os outros com sua força incansável – é bem interessante e ajuda a entender a motivação do personagem com a imagética do filme, incluindo a direção de arte. Existe uma questão religiosa e de culto, mas sinceramente, achei que faltou mais sobre o próprio homem macaco – que, inclusive é o título original do filme – e a questão do destino do protagonista.

Outro desperdício do longa é a pouca de exploração do cinema de ação de Bollywood. Patel até pega algo referenciando visuais, mas faltou carisma e estrutura – ou mesmo o exagero – desse tipo de longa. Poucas pessoas no cinema atual possuem tantas conexões e engajamento para fazer um grande até de ação exagerado bem dirigido. Parece que os anos de Hollywood acabaram moldando esse projeto, que levou certa de 10 anos para ser maturado.

Por falar em construção imagética, o trabalho de luz e sombra é bastante interessante. Essa cidade fictícia é bastante parecida com algo saído dos quadrinhos. A parte rica é quase futurista, enquanto as partes pobres da cidade – ok, temos outro problema: a exploração da pobreza; parece que foi filmado por um homem branco – é repleta de becos, com um tom bastante noir contemporâneo. Ou seja, há cores quentes e muito neon, mas sempre encoberto por um filtro azulado, escurecendo todo o longa. Uma pena que o vermelhão estourado – que, inclusive, está no cartaz do longa – só aparece no ato final. Além de ser visualmente muito estimulante, ele conversa bem a jornada do protagonista e o escalonamento do próprio longa.

Pessoas não brancas também podem fazer bobeiras de ação

O filme se estrutura na ação pausada, algo que parece datado, o que é bastante estranho tendo justamente a franquia John Wick e o cinema coreano contemporâneo de ação como inspiração. No entanto, isso não seria um problema se a maioria dos pontos negativos acima citados, estivessem nesse segundo ato, que além de bastante formulaico, é demasiadamente repetitivo.

Fúria Primitiva é, no entanto, atormentado pelos problemas habituais de qualquer cineasta iniciante, como jogar muitos floreios visuais em tela para ver o que acontece; o que torna tudo um caos. Seu enredo também é excessivamente ambicioso e às vezes difícil de manejar, com suas ideias políticas confusas disfarçando o fato de que este é um filme de ação simples, embora tenha um pequeno toque de comentário social.

Fúria Primitiva tem sequências de luta deslumbrantes, mas a maioria são confusas; um tom incessantemente sombrio e uma performance central interessante; pode ser uma ação básica e cheio de exageros, mas é difícil ser muito rabugento com algo com tanta bravata e coragem de sair do caixinha.

Outras críticas:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.