É curioso como certas experiências de cinema se aproximam da vida de um jeito enviesado, meio incômodo, meio fascinante. GOAT, por exemplo, é um desses filmes que, mesmo cheio de tropeços e escolhas estéticas discutíveis, não consegui odiar. E, veja bem, ele se esforça muito para que eu o deteste. Ainda assim, há algo ali que me puxou – talvez a lembrança de uma adolescência em que, até os 15 anos, eu ainda alimentava a esperança de ser atleta; talvez a familiaridade com os ritos quase religiosos que cercam o esporte; talvez o reconhecimento de um padrão cultural que conhecemos bem por aqui, esse de blindar jogadores como se fossem eternos garotos, “tadinhos”, incapazes de lidar com o peso da própria vida. Difícil não lembrar do nosso eterno “menino Ney”.
Dirigido por Justin Tipping, o longa mistura o universo do horror com o da mitologia esportiva. Cameron (vivido por Tyriq Withers), um jovem aspirante a astro do futebol americano, ingressa no retiro comandado pelo carismático Isaiah (Marlon Wayans). O lugar deveria ser um centro de treinamento de alto nível, mas logo se revela um ambiente sufocante, marcado por caveiras, indícios de magia negra, violência ritualizada e alucinações que oscilam entre o grotesco e o absurdo. O filme, portanto, se constrói como uma fábula de sacrifício, em que o preço da grandeza é atravessar um labirinto de tortura psicológica e física.

O que chama atenção de imediato é a estética. A fotografia aposta em cores berrantes, vermelhos e azuis em contraste constante, luzes piscantes, efeitos de raio-x e capacetes iluminados. A montagem, fragmentada , reforça a sensação de videoclipe, apostando no impacto sensorial mais do que na construção narrativa. Há energia nisso, sem dúvida, mas também um excesso que às vezes se aproxima da caricatura. É como se Tipping quisesse lançar mão de todos os recursos possíveis, sem se preocupar em costurá-los numa coerência mínima. O resultado é uma experiência que atordoa, mas raramente emociona.

Um detalhe curioso – e frustrante – é que, para um filme que se apresenta como esportivo, nunca vemos uma partida completa. Não há o jogo em si, a disputa que mostraria o talento de Cameron ou Isaiah. Em vez disso, o espectador precisa acreditar nas falas e slogans que repetem incessantemente que eles são os melhores. Essa ausência enfraquece a imersão e distancia a obra do drama esportivo clássico. Tudo se resolve na metáfora, não na demonstração. O campo nunca é palco, apenas tela de fundo para os rituais.
As atuações seguem essa lógica da contenção. Withers interpreta Cameron de forma estoica, quase imperturbável. É um protagonista que parece atravessar a narrativa anestesiado, mesmo diante das violências e provocações que sofre. A escolha poderia sugerir resistência silenciosa, mas acaba soando limitada – falta variedade emocional para que o público realmente sinta sua dor ou seu conflito. Wayans, por sua vez, é convincente como Isaiah, dono de um carisma que sustenta parte do culto ao redor de seu personagem. Ele encarna bem a figura do ídolo, mas também não escapa da unidimensionalidade imposta pelo roteiro.
E é aí que GOAT se perde de vez: Tipping não confia no espectador. As metáforas, em vez de insinuadas, são explicadas em diálogos diretos, repetidas em imagens óbvias. Os personagens declaram o que já está visível: “o jogo recompensa a violência”, “isso não é um jogo, é tudo”. Cameron é enquadrado numa versão da Última Ceia, Isaiah é cercado de placas que o chamam de divindade. Tudo grita o tempo todo, como se fosse preciso lembrar a cada minuto o peso da alegoria. O filme, que poderia ganhar força pela sugestão, prefere martelar suas ideias até esvaziá-las.
Apesar disso, há algo que permanece interessante. A crítica embutida em GOAT não se limita ao terror estilizado, ela toca diretamente no modo como o esporte fabrica ídolos e os protege de qualquer responsabilidade. Cameron se submete a abusos porque acredita que será recompensado; Isaiah é tratado como semideus por uma multidão fanática. Essa dinâmica ecoa com força em nosso próprio contexto. Aqui, também costumamos tratar homens adultos como garotos mimados, blindados por famílias, empresários, clubes, mídia e até por presidentes. Neymar, chamado de “menino” mesmo aos 33 anos, é exemplo perfeito dessa infantilização. Assim como Cameron, ele também foi lapidado desde cedo como mercadoria preciosa, mas privado de experiências comuns à juventude. O resultado é um adulto que, frequentemente, não sabe lidar com limites nem frustrações.

Esse diálogo entre ficção e realidade talvez explique por que não consegui odiar GOAT, por mais que o filme se esforce para merecer o contrário. Existe uma verdade por trás de seus exageros: o esporte, muitas vezes, é uma máquina que engole a individualidade em nome da glória. O retiro de Isaiah é apenas uma versão distorcida – mas reconhecível – da forma como clubes e empresários tratam seus talentos, criando ídolos frágeis e intocáveis.
No fim, GOAT é irregular, exagerado e, em muitos momentos, cansativo. Mas há nele um desconforto que ressoa, um incômodo que sobrevive ao excesso de cor, som e alegoria. Talvez seja isso que me fez gostar – ainda que a contragosto. É uma obra que tropeça no didatismo, mas acerta ao traduzir em imagens a devoção cega ao esporte e a infantilização de seus protagonistas. E se a experiência não chega a ser satisfatória como cinema, serve ao menos como espelho distorcido de algo que conhecemos bem: a cultura do “tadinho do menino Ney”, sempre tratado como garoto, ainda que já faça tempo que deixou a adolescência para trás.
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