Ao longo de sua filmografia, Guillermo del Toro construiu um universo autoral onde monstros ganham alma e os humanos revelam suas monstruosidades. Frankenstein, enfim realizado após anos de desenvolvimento, é a culminação desse percurso. Trata-se de um filme que condensa os principais elementos da carreira do cineasta mexicano, funcionando como um verdadeiro compêndio de suas obsessões formais, temáticas e simbólicas – um “Frankenstein cinematográfico” no melhor e mais literal sentido. Se você, assim como eu, acompanhou seus filmes desde “Cronos” até “Pinóquio”, verá em cada sequência deste novo longa traços de todos os Del Toros que já existiram.
Baseado no clássico literário absoluto de Mary Shelley, Frankenstein narra a história já conhecida de Victor Frankenstein (Oscar Isaac), cientista obcecado por vencer a morte, e sua Criatura (Jacob Elordi), um ser feito de cadáveres e condenado desde o nascimento a ser rejeitado. Del Toro, no entanto, não busca apenas adaptar, mas também reinterpretar o romance gótico sob o prisma de suas próprias inquietações. A figura do “Prometeu moderno” ganha aqui contornos profundamente visuais, dramáticos e míticos. E, como era de se esperar, o filme é um deleite estético: fotografia carregada, direção de arte luxuosa, trilha sonora grandiosa (de Alexandre Desplat) e uma composição de planos que grita paixão pela mise-en-scène clássica.
Mas se esteticamente o filme alcança picos sublimes, narrativamente ele patina. Há um certo desequilíbrio tonal que fragiliza o impacto emocional da obra. O prólogo é potente, mas o primeiro ato se alonga além do necessário em explicações e contextualizações, retardando o envolvimento do espectador com a tragédia central. Só quando a Criatura entra efetivamente em cena – na metade do filme – é que o longa começa a pulsar de verdade.

Elordi entrega aqui sua performance mais completa: vulnerável, assombrada, e paradoxalmente serena. É o tipo de atuação que não apenas reinterpreta a Criatura de Shelley, mas também humaniza um personagem há muito deformado por adaptações genéricas.
Oscar Isaac também está em alta voltagem. Seu Victor Frankenstein é mais do que um cientista louco: é um homem dilacerado, movido por culpa e vaidade, e sua jornada é tanto uma tragédia pessoal quanto uma crítica à pretensão do homem em dominar a vida e a morte. A tensão entre criador e criatura, marcada por amor, ódio, fascínio e repulsa, ganha um peso quase operístico. É nessa relação que o filme encontra sua maior força – e é ali que Del Toro parece se sentir mais à vontade, deixando fluir toda a carga dramática e simbólica da narrativa.

No entanto, há um inchaço narrativo que atrapalha. A subtrama romântica envolvendo Elizabeth (Mia Goth), com seus ecos de “Drácula”, soa mal resolvida, quase dispensável. Apesar da presença de Goth, sua personagem oscila entre arquétipo e função narrativa, sem nunca encontrar uma verdadeira centralidade. Christoph Waltz, como o magnata que financia os experimentos de Victor, também entrega uma performance burocrática, reciclada de papéis anteriores. Já David Bradley, em participação breve, protagoniza um dos momentos mais tocantes da obra – o encontro entre a Criatura e o velho cego –, um raro instante em que o filme para de discursar e apenas sente.

Visualmente, Frankenstein é deslumbrante. As referências ao expressionismo alemão, ao gótico clássico e à iconografia católica estão por toda parte. Há ecos diretos de “O Labirinto do Fauno”, “A Colina Escarlate” e até “Hellboy II”, sobretudo na forma como o horror e a fantasia se entrelaçam ao drama humano. A criatura, coberta de costuras e sofrimento, é quase uma extensão visual dos fantasmas que assombram o próprio Del Toro desde sempre: seres à margem, vítimas da crueldade alheia, que carregam em seus corpos as cicatrizes do mundo.
Ainda assim, fica uma sensação agridoce. Em seu desejo de ser a adaptação definitiva de Frankenstein, Del Toro opta por uma fidelidade que, por vezes, engessa a narrativa. A estrutura episódica, intercalando a perspectiva de Victor com a da Criatura, é coerente com o romance original, mas o filme parece hesitar em dar um passo além. Faltam surpresas, riscos criativos, rupturas com o que já vimos antes – especialmente se considerarmos o histórico do diretor.
Talvez o maior problema de Frankenstein seja justamente sua reverência. O projeto dos sonhos de Del Toro, carregado de expectativa e peso simbólico, por vezes se perde em sua própria solenidade. É um filme feito com o coração, mas que nem sempre alcança o coração do espectador. Como a Criatura que retrata, Frankenstein é belo, poderoso, com partes admiráveis – mas carece de uma centelha unificadora que o transforme em algo verdadeiramente vivo.
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