Há um risco enorme em escrever sobre Homo Argentum após semanas em que o filme foi tragado para o moedor de carne das redes sociais e sequestrado por discursos políticos. No meu caso, o risco é ainda maior: eu, alguém que rejeita absolutamente tudo o que representa o presidente argentino Javier Milei, poderia cair facilmente na armadilha confortável – e preguiçosa – de repudiar o longa apenas porque ele foi elogiado pelo mandatário. Seria simples, automático e até compreensível num mundo em que o like vale mais que uma reflexão. Mas um dos prazeres mais inesperados da arte é justamente este: até figuras das quais discordamos profundamente podem encontrar ressonância em obras que não lhes pertencem, obras que existem antes e além delas. E Homo Argentum, apesar de irregular, cansativo em algumas passagens e com um apetite maior do que sua própria capacidade digestiva, está muito longe de ser o monstro que parte do público quis enxergar sem o assistir. É exatamente nessa contradição – entre a facilidade de odiar e a exigência de pensar – que essa crítica começa, para que também termine.
O longa, dirigido por Cohn e Duprat e estrelado por Guillermo Francella em dezesseis personagens distintos, estrutura-se como uma colagem de esquetes que orbitam a ideia da identidade argentina – ou, mais precisamente, a caricatura dessa identidade. São fragmentos curtos, às vezes muito curtos, que perseguem comportamentos, vícios, obsessões e contradições nacionais, compondo uma espécie de mosaico moral em que cada peça importa menos pelo enredo e mais pela tensão que propõe.

Os diretores constroem esses quadros com um olhar que alterna entre o sarcasmo e o desencanto, e isso já se nota na escolha pelo formato episódico. Essa fragmentação, que lembra imediatamente “Relatos Selvagens”, não repete seu êxito justamente por um motivo técnico, a montagem. Aqui, em vez de criar uma progressão emocional que vai amarrando as partes e intensificando o conjunto, a montagem é nervosa, quase ansiosa, como se temesse que o espectador não tivesse tempo de “pegar” a mensagem. Em vários momentos, a troca de histórias se dá sem transição sensorial suficiente, o que esvazia o impacto de cada curta. É como se, na pressa de chegar ao próximo comentário social, a narrativa atropelasse a si mesma.
Ainda assim, há méritos inegáveis. A direção de fotografia trabalha com contrastes interessantes, oscilando entre a frieza asséptica de escritórios e apartamentos de luxo e a luz quente, quase terrosa, dos ambientes populares – um recurso simples, mas eficiente, para marcar a geografia simbólica do filme. Mais do que criar beleza plástica, a fotografia aqui reforça o subtexto; a Argentina das bolhas, dos mundos que raramente se tocam. Em certos curtas, como o do arbolito ou o do político perdido em sua própria cadeia nacional de indecisões, o uso de planos médios e movimentações sutis de câmera cria uma sensação de normalidade inquietante, como se observássemos algo cotidiano e grotesco ao mesmo tempo.
Já a direção de atores, especialmente no trato com Francella, é um capítulo à parte. O ator navega por registros muito diferentes, por vezes revisitando maneirismos que o público conhece há décadas, mas também arriscando gestos mínimos – olhares, pausas, respirações aflitas – que sustentam os personagens mais silenciosos. Mesmo quando o roteiro não ajuda, Francella encontra um ponto de ancoragem cômica ou dramática. É um daqueles casos em que a atuação funciona como o eixo de estabilidade de uma estrutura frágil.
Em termos de roteiro, porém, o filme vive entre acertos inspirados e tropeços difíceis de ignorar. Algumas histórias se esgotam no ponto de partida e não evoluem – são ideias que parecem saídas diretamente de um brainstorming, prontas demais, óbvias demais. Outras realmente constroem um conflito, ainda que mínimo, permitindo que o espectador reflita sobre atitudes que reconhecemos – e às vezes preferimos fingir que não. Os melhores momentos surgem justamente quando a caricatura encontra um detalhe humano inesperado, como no esboço de remorso que escapa em meio ao caos ou no afeto confuso que aparece entre personagens incapazes de admiti-lo.
Mas é impossível ignorar um elemento que salta aos olhos até de quem entra na sala sem qualquer contexto político: o product placement. Não é apenas presente – é intrusivo. Em alguns curtas, a marca parece falar mais alto que o texto, engolindo a diegese e lembrando ao espectador, por segundos fatais, que ele está vendo publicidade embutida. A direção tenta incorporar esses elementos ao cenário, mas nem sempre consegue. O resultado é que a imersão se rompe, e o filme se aproxima perigosamente do visual de um comercial estendido. Essa decisão, compreensível do ponto de vista financeiro, gera ruído narrativo e reforça o cansaço que se acumula ao longo dos 16 episódios.

Ainda assim, seria desonesto dizer que Homo Argentum não tem momentos realmente bons. Há curtas que encontram ritmo, piada, crítica e timing num espaço mínimo; há observações que irritam justamente porque são verdadeiras; há paralelos incômodos que nos obrigam a pensar em nossos próprios pequenos deslizes cotidianos. O filme não odeia os argentinos, mas os examina. E essa diferença é fundamental para entender a proposta. O que chega ao público é um retrato exagerado, sim, mas nem por isso falso.
A grande ironia, no entanto, é que a obra – e toda a polêmica ao seu redor – acaba revelando algo ainda mais perturbador do que qualquer personagem, essa ânsia contemporânea de usar filmes como munição política. A direita o abraçou por conveniência, parte da esquerda o rejeitou por reflexo, e ambos os movimentos dizem muito mais sobre o estado emocional da Argentina do que sobre o filme em si. A arte virou pretexto para um combate que já estava armado antes mesmo da primeira exibição.
Homo Argentum não é uma obra-prima, não revoluciona nada, não é consistente, e às vezes quase tropeça na própria ambição. Mas tampouco merece ser tratado como inimigo público por adesões políticas alheias. A crítica válida deve nascer do que está na tela e não das batalhas que travamos fora do cinema.
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