Crítica | Hot Milk é um delírio solar que não queima o suficiente
02 Play/Divulgação

Crítica | Hot Milk é um delírio solar que não queima o suficiente

Rebecca Lenkiewicz, conhecida por roteiros que exploram a complexidade feminina em filmes como “Ida” e “Colette”, assume pela primeira vez a direção em Hot Milk, adaptação do livro homônimo de Deborah Levy. A história, ambientada no sul da Espanha, acompanha Sofia (Emma Mackey), uma jovem que interrompeu seus estudos para cuidar da mãe, Rose (Fiona Shaw), uma mulher presa a uma cadeira de rodas sem diagnóstico médico claro. O que se desenhava ser um mergulho profundo em temas como dependência emocional, sexualidade e emancipação acaba se perdendo em um filme que hesita entre o real e o onírico, sem nunca se entregar completamente a nenhum dos dois.

A primeira impressão que Hot Milk deixa é a de um filme que quer ser muitas coisas ao mesmo tempo – um drama psicológico, um conto de fadas moderno, um estudo de personagens – mas que, no fim, não se compromete com nenhuma delas. A narrativa oscila entre cenas de realismo cru e sequências surrealistas, como os sonhos de Sofia em que ela também se vê confinada a uma cadeira de rodas, ou os encontros dela com Ingrid (Vicky Krieps), uma mulher misteriosa que surge em cena montada em um cavalo, como uma visão mitológica. Esses elementos, porém, não se conectam de forma orgânica. A montagem, que deveria costurar esses planos de maneira fluida, acaba criando uma sensação de fragmentação que mais confunde do que encanta.

Crítica | Hot Milk é um delírio solar que não queima o suficiente
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A fotografia, assinada por Si Bell é inegavelmente bonita, mas também excessivamente polida. As praias de Almería, com seu sol inclemente, são capturadas em tons dourados e azuis vibrantes, mas falta a elas a aspereza que poderia traduzir o desconforto emocional das personagens. Tudo parece muito limpo, muito controlado, como se o calor do deserto tivesse sido domesticado para não ofender o espectador. É uma pena, porque a história pede justamente o oposto – que a paisagem seja tão opressiva quanto a relação entre mãe e filha.

Fiona Shaw rouba a cena como Rose, uma mulher cuja doença parece ser tanto física quanto psicológica, e que manipula a filha com uma mistura de chantagem emocional e infantilidade. Há momentos em que Shaw brilha, especialmente quando Rose oscila entre a vulnerabilidade e a crueldade.

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Emma Mackey, conhecida por “Sex Education”, entrega uma performance competente, mas não consegue transmitir a profundidade necessária para fazer de Sofia uma protagonista cativante. Sua química com Vicky Krieps, que interpreta Ingrid, é quase inexistente – o que é problemático, já que o despertar sexual de Sofia deveria ser um dos motores da trama. Krieps, por sua vez, está em seu território habitual: enigmática, etérea, mas sem surpresas para quem já a viu em outros filmes do gênero.

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O médico/xamã interpretado por Vincent Perez é outra figura intrigante, mas subutilizada. Ele surge como um potencial catalisador para a libertação de Sofia, mas seu papel é reduzido a algumas cenas de diálogo que não vão a lugar nenhum. É como se o filme tivesse medo de explorar plenamente suas próprias possibilidades simbólicas. Os animais que aparecem esporadicamente – águas-vivas, cobras, cachorros – parecem querer significar perigo ou desejo, mas acabam soando como elementos decorativos, mais conceituais do que narrativos.

E aqui chegamos ao cerne do problema: Hot Milk é um filme que tenta flertar com o estilo “a cara da MUBI“, aquele cinema indie que mistura drama intimista com estética poética e um pé no surreal. Como brincou um usuário do Letterboxd, a obra parece uma colagem de filmes como “Call Me by Your Name”“Aftersun” e “Retrato de uma Jovem em Chamas” – só que sem a força emocional de nenhum deles. A comparação é injusta, claro, mas ilustra uma certa falta de identidade própria. O filme tem todos os signos de um drama art-house (personagens angustiadas, paisagem simbólica, montagem não linear), mas não os articula de maneira convincente.

Print Screen/Letterboxd

Lenkiewicz demonstra habilidade em criar atmosfera, mas peca na condução do ritmo. Cenas que deveriam ser tensas, como as discussões entre mãe e filha, são interrompidas por sequências oníricas que quebram a tensão sem acrescentar nada de substancial. O roteiro, embora tenha diálogos interessantes, não aprofunda suficientemente os conflitos. A toxicidade da relação entre Rose e Sofia é sugerida, mas nunca explorada em toda sua crueza. O despertar sexual de Sofia, que poderia ser um eixo narrativo potente, fica relegado a cenas que mais parecem cliches de filmes sobre autodescoberta.

Ainda no campo do simbólico, Hot Milk é como a água-viva que queima Sofia na praia: dói no momento, mas não deixa marcas profundas. O filme tem momentos de beleza visual e interpretações sólidas, mas falta coragem para mergulhar de cabeça no absurdo e na desordem que sua própria história parece exigir. É uma obra que caminha sobre a areia quente, mas com sapatos – e cinema, quando quer realmente incendiar, precisa ser descalço.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.