Crítica | Mac DeMarco tira o peso do passado e faz da simplicidade um abrigo em 'Guitar'
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Crítica | Mac DeMarco tira o peso do passado e faz da simplicidade um abrigo em ‘Guitar’

A maturidade chegou com melodias que soam como um diário aberto

A primeira vez que dei o play em Guitar, novo álbum de Mac DeMarco, não estava esperando muito. Quase deixei passar. Não por falta de interesse, mas porque a sensação era a mesma de encontrar uma carta dobrada em quatro, esquecida no bolso de uma calça velha. É um disco que não pede atenção – ele sussurra, e se você não estiver disposto a escutar, pode acabar deixando escapar o que ele tem de mais valioso: sua vulnerabilidade.

Mas ali estava ele. Trinta e um minutos de música que parecem um intervalo entre a vida e o sono. Guitarras limpas, gravações sem maquiagem e letras que falam baixinho, mas não por isso dizem menos. Um álbum sem pressa, que carrega um tipo de melancolia íntima, quase paroquial.

Se em “This Old Dog”, de 2017, já mostrava um DeMarco mais contido e reflexivo, Guitar parece concluir essa curva, colocando definitivamente o artista num lugar de desprendimento e aceitação. Longe da irreverência debochada de “2” (2012) e “Salad Days” (2014), aqui ele se mostra como alguém que não quer mais performar um personagem – nem para o público, nem para si mesmo. É Mac como Mac, com seus silêncios, repetições e falhas.

A própria capa do disco já diz muito. Ele, um cachorro, e sua guitarra. Nada de pose, nada de conceito estético mirabolante. É quase um “bom dia” dito com a cara ainda amassada de sono. A arte visual acompanha o espírito do álbum: simples, direta, honesta – ou, ao menos, mais honesta do que muito do que se vê na estética ultra-polida da indústria atual.

E é nessa simplicidade que Guitar encontra sua força. Cada faixa soa como uma gravação feita entre amigos na sala de casa, sem pretensão de soar perfeita. A produção é minimalista, com arranjos econômicos – geralmente guitarra, baixo, bateria e voz. Sem truques, sem sobreposições. O que poderia ser uma limitação vira uma estética, e mais ainda, uma escolha clara: permitir que a canção respire.

A faixa de abertura, “Shining”, já dá o tom. Uma bateria seca, um baixo que quase tropeça de tão contido, e a voz de DeMarco em falsete – crua, hesitante, mas emocionalmente precisa. Em apenas 10 segundos, ela já sugere que estamos diante de algo diferente. Evoca o lirismo trêmulo de Elliott Smith, mas com a placidez de quem já não tem mais a necessidade de lutar contra as coisas.

Essa resignação aparece de forma recorrente ao longo do álbum. Em “Sweeter”, DeMarco canta: “This time will be sweeter / I can be much sweeter / Some things never change”. A ironia da promessa se desfaz ao final da frase, quase como quem sabe que o ciclo vai se repetir. Em “Rooster”, talvez a minha preferida do disco, o desabafo é ainda mais direto: “Things are looking kinda used up / Darling, I don’t mind / Long as we still got each other”. É o tipo de maturidade que vem quando se entende que amar não é transformar ninguém, mas permanecer apesar dos desgastes.

Musicalmente, Guitar pode ser lido como uma continuação natural de “Five Easy Hot Dogs” de 2023, álbum instrumental gravado em viagens pelos Estados Unidos. A mesma leveza, a mesma ausência de tensão dramática. Só que agora com palavras. E essas palavras, ainda que soem simples, são costuradas com uma precisão emocional que merece ser sublinhada.

Na já mencionada “Nightmare”, talvez a mais tocante do disco, DeMarco faz um agradecimento velado à esposa Kiera McNally, com quem está há 15 anos. A música trata de um afeto real, cotidiano, sem enfeite. Nada de romantismo exagerado, só a presença constante de alguém ao lado. A melodia é enxuta, construída a partir de acordes que se repetem como um mantra, e é exatamente aí que mora sua beleza.

É interessante perceber que Guitar não tem medo de soar repetitivo. De fato, ele é. E assume isso sem constrangimento. A cada faixa, o ouvinte pode sentir que está ouvindo uma variação da anterior. Mas esse é o ponto. Existe algo quase meditativo nesse padrão, como se DeMarco estivesse tentando fixar uma ideia, ou talvez atravessar um mesmo sentimento por ângulos diferentes.

Em “Holy”, ele canta: “Curse / Carried on forever in me / Curse / From which I may never free”. Um lamento suave, quase sagrado. A canção conversa com a já citada “Nothing At All”, onde ele admite: “All your cures, been put away / You’ve no control now”. São músicas que não oferecem uma redenção. Não há refrão, nem pontes que prometem uma virada. O que há é a constatação: a vida continua, mesmo que com os mesmos fantasmas.

Talvez a única música que se afasta um pouco dessa linha seja “Rock and Roll”, com um improviso de guitarra que, embora simples, soa como um grito abafado – ou talvez um último respiro antes da calmaria total. Ainda assim, não é um rompante. É só um sussurro mais alto.

A crítica mais comum ao álbum tem sido a de que ele não se arrisca instrumentalmente. E é verdade. Há pouco ou nenhum desenvolvimento de novas texturas, e a paleta sonora segue a mesma de trabalhos anteriores como “Here Comes the Cowboy” (2019). Mas esse conservadorismo não é, necessariamente, um problema. Quando a proposta é trabalhar a repetição como estética e refletir sobre a estagnação como estado emocional, essa limitação ganha significado.

O que Guitar faz, com muito cuidado, é abrir espaço para que a música seja sentida, e não apenas ouvida. Não é um disco que vai tocar no rádio. Não vai viralizar. Mas é o tipo de trabalho que permanece, como uma lembrança que aparece quando você menos espera. Mac DeMarco não quer palco. Quer só um canto para sentar, tocar sua guitarra, olhar para o cachorro e cantar sobre tudo aquilo que ainda dói, mas já não machuca como antes.

Guitar é, ao mesmo tempo, uma despedida do velho DeMarco e um aceno para o artista que ele sempre foi, mas talvez tivesse escondido debaixo do humor, dos efeitos de chorus e das poses de anti-herói indie. Se esse disco não for entendido agora, tudo bem. Ele também parece não estar com pressa.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.