Crítica | Malês: Entre o sonho histórico e a forma televisiva que limita sua revolta
Imovision/Divulgação

Crítica | Malês: Entre o sonho histórico e a forma televisiva que limita sua revolta

Malês, dirigido pela lenda Antônio Pitanga, é um desses filmes que nascem do coração. A ideia de revisitar nas telas a Revolta dos Malês – a mais emblemática insurreição de escravizados da história brasileira – é, por si, um gesto de resgate e coragem. Pitanga, figura monumental do cinema nacional, não apenas retorna à direção, mas faz de seu filme um ato político e familiar: reúne os filhos Camila e Rocco Pitanga para dar corpo e voz a uma genealogia negra que é, ao mesmo tempo, pessoal e coletiva. Ainda assim, a nobreza do gesto não basta para sustentar a obra. O resultado é um drama de intenções grandiosas que, no entanto, se perde entre a reverência histórica e a indecisão estética.

Desde os primeiros minutos, Malês parece hesitar entre o registro épico e o didatismo televisivo. A narrativa avança em saltos abruptos, atravessando continentes e décadas com uma montagem que não encontra ritmo nem coerência. Essa desarticulação não apenas confunde o espectador, como também enfraquece o impacto dramático da revolta. Há a sensação de que o filme foi montado como quem tenta costurar um tecido rasgado; as emendas aparecem, os fios ficam expostos. A câmera de Pitanga, por vezes estática e em outras tremida em excesso, parece também indecisa sobre como retratar um episódio de tamanha força simbólica.

A fotografia digital, extremamente nítida e polida, contribui para essa ambiguidade. Em vez de transportar o público ao século XIX, o brilho artificial e a iluminação moderna reforçam a sensação de estarmos diante de uma novela de época. É curioso observar como o filme tenta recriar o passado com recursos do presente, sem jamais decidir se quer assumir essa anacronia como linguagem – algo que “Carlota Joaquina”, que foi revisado aqui, fez muito bem. O resultado é um híbrido estranho; cenários históricos e figurinos detalhados convivem com uma textura visual contemporânea que esvazia o peso do tempo. Essa contradição estética acaba comprometendo a imersão, tornando a Bahia de 1835 mais próxima de um estúdio do Projac do que de um espaço histórico pulsante.

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Mas seria injusto negar as virtudes da proposta. Pitanga demonstra, como poucos, uma devoção inabalável ao tema e ao seu legado cultural. Ao escolher interpretar um homem escravizado e encarcerado, ele inscreve a própria biografia na história que conta. Há nisso um gesto simbólico poderoso. O artista veterano passa o bastão aos filhos, entregando a eles o papel de dar continuidade à luta por representatividade e memória. Essa camada familiar, que mistura ficção e herança, confere ao projeto um valor emocional que nenhuma falha técnica consegue anular. Malês é, nesse sentido, um testamento afetivo à resistência negra no Brasil.

No entanto, quando se analisa o filme sob o olhar crítico, o contraste entre intenção e realização é gritante. O roteiro tenta abraçar uma estrutura coral, mas não consegue equilibrar as muitas vozes que coloca em cena. Cada personagem surge carregado de propósito – um símbolo, uma ideia, uma causa –, mas raramente ganha vida própria. O espectador acompanha fragmentos de histórias que se perdem na dispersão. A ausência de um eixo narrativo definido faz com que o filme oscile entre o documento histórico e o sermão político, sem alcançar a fluidez que tornaria sua mensagem mais potente.

As atuações refletem essa dificuldade de tom. Camila Pitanga, sempre elegante, encontra doçura e contenção em Sabina, ainda que sua personagem seja prejudicada por um arco problemático – especialmente quando o roteiro a coloca como delatora dos revoltosos, numa construção que soa injusta e mal resolvida. Rocco Pitanga e Heraldo de Deus, por sua vez, se esforçam para imprimir densidade aos papéis, mas enfrentam diálogos artificiais e uma direção de atores que privilegia o discurso em detrimento da emoção. Já Antônio Pitanga, com sua presença magnética, parece mais à vontade nos momentos de introspecção do que nos discursos inflamados.

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O estilo declamatório das falas, com frases de efeito e explicações desnecessárias, reforça o caráter didático da obra. A mise en scène, quase sempre rígida, evidencia a dificuldade de Pitanga em articular a coletividade que o filme tanto deseja retratar. As cenas em grupo carecem de movimento e organicidade; os corpos se alinham lado a lado, como se posassem para uma pintura estática. Em vez de dinamismo, o que vemos é encenação. Essa limitação se estende à montagem, que falha em dar ritmo aos acontecimentos e alterna momentos de excessiva lentidão com cortes abruptos que quebram a continuidade.

O som, outro elemento crucial, também contribui pouco para a ambientação. As dublagens mal sincronizadas e os ruídos artificiais denunciam as dificuldades de produção. Há trechos em que a voz parece desconectada da imagem, o que gera estranhamento e enfraquece o realismo buscado. Ainda assim, é preciso reconhecer o esforço em preservar o idioma árabe e as expressões islâmicas, reforçando a autenticidade dos personagens e a importância da religião na articulação política dos Malês. Infelizmente, a inconsistência dos sotaques – ora duros, ora naturais – compromete a uniformidade sonora.

Quando a revolta finalmente irrompe, a encenação da batalha carece de impacto. A câmera tremida e o corte apressado tentam criar sensação de urgência, mas o que se vê é confusão espacial. Falta noção de geografia das ações: não se sabe quem está onde, quem luta contra quem, ou o que está em jogo naquele instante. É uma pena, porque ali residia o potencial de catarse que o filme tanto prometia.

Ainda assim, o desfecho de Malês revela a esperança que moveu seu diretor. Ao encerrar com um nascimento, Pitanga reafirma a continuidade da vida e da luta – o ciclo que não se encerra com o sangue derramado. O gesto é bonito e sincero.

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O problema maior de Malês não está na falta de talento ou paixão, mas na forma como Pitanga escolhe expressá-los. Ao adotar uma estética convencional e um ritmo de telenovela, o filme dilui o poder de seu tema e se distancia da ousadia que marcou a carreira do cineasta em obras anteriores. Diante de um acontecimento histórico tão grandioso, esperava-se um olhar mais inventivo, capaz de transformar a memória em cinema, não apenas em reconstituição.

Malês é um filme que merece respeito, mas não indulgência. Sua importância simbólica é inegável: existe para lembrar que a história negra do Brasil é vasta, complexa e ainda pouco contada. Porém, ao confundir reverência com rigidez, Pitanga acaba entregando uma obra que, embora necessária, carece de vida e de vigor cinematográfico. O Brasil e seu povo preto mereciam mais – e o próprio Pitanga, com seu legado, também.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.