Milton Nascimento é um daqueles raros artistas que transcendem a música para se tornar um fenômeno cultural. Sua voz, suas composições e sua presença são como um rio que atravessa gerações, carregando consigo histórias, memórias e uma profunda conexão com o Brasil. Por isso, quando se anuncia um documentário sobre sua última turnê, a expectativa é naturalmente alta. Afinal, como condensar a grandiosidade de um legado tão vasto e multifacetado em algumas horas de filme? A resposta, infelizmente, não é simples. Milton Bituca Nascimento, dirigido por Flavia Moraes, é uma obra que tenta abraçar o inabarcável, mas acaba perdendo um pouco do fôlego ao tentar equilibrar homenagem, biografia e registro de turnê.
O filme começa de forma dispersa, como se estivesse tentando encontrar seu próprio ritmo. Cenas de shows, depoimentos de artistas e imagens de arquivo se misturam sem uma linha narrativa clara. Essa falta de direcionamento inicial pode confundir o espectador, que fica sem saber se está assistindo a um documentário sobre a última turnê, uma biografia ou uma coletânea de elogios. A montagem, embora criativa em alguns momentos, parece mais interessada em sobrepor vozes e imagens do que em construir uma narrativa coesa. O resultado é um começo caótico, que demora a engrenar.
Um dos pontos altos do documentário é, sem dúvida, a presença de Milton Nascimento. Ver o artista refletindo sobre sua própria trajetória, suas inspirações e suas dificuldades é emocionante. Ele fala com uma serenidade que só os grandes mestres possuem, e suas palavras têm o poder de transportar o espectador para dentro de sua mente criativa. No entanto, esses momentos são intercalados com depoimentos de outros artistas, muitos deles estrangeiros, que tentam explicar a grandiosidade de Milton. Aqui, surge um dos problemas do filme: a sensação de que o reconhecimento internacional é colocado em um pedestal, como se a validação de nomes como Herbie Hancock, Quincy Jones ou Paul Simon fosse necessária para confirmar o que nós, brasileiros, já sabemos há décadas. Milton não precisa ser “validado” por ninguém. Ele é, por si, uma entidade da cultura brasileira.

A narração de Fernanda Montenegro, embora bela e poética, acaba reforçando essa sensação de que o documentário tenta ser muitas coisas ao mesmo tempo. Seu texto, repleto de metáforas e descrições líricas, busca capturar a essência da música de Milton, mas muitas vezes soa como um comercial de banco ou uma homenagem póstuma. E é aí que reside outro ponto delicado: o tom de obituário que permeia o filme. Milton está vivo, firme e forte, mas a maneira como o documentário é construído dá a impressão de que estamos diante de uma despedida definitiva. Isso pode ser frustrante para quem esperava ver um retrato mais vibrante e celebratório do artista.
Apesar dessas questões, há momentos que brilham. As cenas dos shows, por exemplo, são de tirar o fôlego. Ver Milton no palco, cercado por músicos talentosos, é uma experiência que transcende a tela. Sua voz, ainda potente e mágica, nos lembra por que ele é considerado um dos maiores cantores da história da música brasileira. No entanto, esses trechos são frequentemente interrompidos por depoimentos ou narrações, o que quebra o ritmo e diminui o impacto emocional. É como se o filme não confiasse o suficiente na força da música de Milton para falar por si mesma.

Outro aspecto que chama a atenção é a tentativa de explorar as múltiplas facetas de Milton: o cantor, o compositor, o mito e o legado. Essa divisão, embora interessante em teoria, nem sempre funciona na prática. A seção dedicada à voz de Milton, por exemplo, é dominada por depoimentos de artistas estrangeiros que elogiam sua técnica vocal, mas pouco falam sobre o que essa voz representa para o Brasil. Já a parte sobre o compositor é mais rica, com análises de suas parcerias e do processo criativo por trás de canções icônicas. Aqui, depoimentos de Caetano Veloso, Chico Buarque e Lô Borges são especialmente valiosos, pois mostram como Milton conseguiu traduzir em música as complexidades e belezas do Brasil. Nomes como Tim Bernardes, Maria Gadú e Esperanza Spalding aparecem não apenas para reverenciar o mestre, mas para mostrar como sua influência permeia suas próprias obras.
Essa terceira e quarta faceta é um tanto quanto falha, mas é evidente o que Flávia mostrou novos artistas representando o legado desse mito. Nomes como Tim Bernardes, Maria Gadú e Esperanza Spalding aparecem não apenas para reverenciar o mestre, mas para mostrar como sua influência permeia suas próprias obras e funcionam como exemplos vivos de como a arte de Milton transcende gerações. Eles não apenas celebram o passado, mas carregam adiante a chama de uma música que é, ao mesmo tempo, profundamente enraizada e universal, ressaltando que Milton não é apenas um tesouro do passado, mas uma semente que continua a florescer.

No entanto, o filme peca ao não explorar suficientemente a conexão de Milton com Minas Gerais e com o Clube da Esquina, dois pilares fundamentais de sua identidade artística. Apesar de algumas menções e imagens das montanhas mineiras e trens, senti falta de uma imersão mais profunda nesse universo. Milton não é apenas um cantor; ele é um mineiro que carrega consigo as paisagens, as histórias e as tradições do estado que tornou esse carioca num símbolo de Minas Gerais. Essa dimensão geográfica e cultural poderia ter sido mais explorada, dando ao documentário uma camada adicional de significado.
A montagem, como já mencionado, é um ponto, no mínimo, divisivo. Em alguns momentos, a sobreposição de vozes e imagens cria um efeito quase poético, evocando a complexidade e a riqueza da música de Milton. Em outros, no entanto, a técnica parece forçada, como se o filme estivesse tentando ser mais experimental do que precisa ser. A edição de som, por outro lado, é impecável, equilibrando as entrevistas, as músicas e a narração sem que um elemento sobreponha o outro.
O que fica é uma sensação ambígua. Por um lado, Milton Bituca Nascimento é uma homenagem digna a um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos. Por outro, é uma obra que parece hesitar entre ser um documentário de turnê, uma biografia e uma coletânea de depoimentos, sem se aprofundar suficientemente em nenhum desses aspectos. O filme tem seus momentos de brilho, mas também deixa a desejar em termos de foco e profundidade.

Talvez o maior mérito do documentário seja justamente nos lembrar da grandiosidade de Milton Nascimento. Ele é jazz, é rock, é MPB, é bossa nova, é cinema, é negritude, é fé, é Brasil profundo, é Minas Gerais, é Guimarães Rosa, é o grande sertão, são as montanhas, é travessia. Ele é, acima de tudo, uma voz que ecoa além do tempo e do espaço. E se o filme não conseguiu capturar toda a complexidade desse artista, pelo menos nos deixou com a vontade de ouvir suas músicas novamente, de revisitar sua obra e de celebrar sua existência.
Milton Nascimento não precisa de um documentário para ser lembrado. Sua música já faz isso por ele. Mas é bom saber que, apesar das falhas, alguém tentou contar um pouco dessa história. Afinal, como dizem por aí, o tempo é travesso, mas a vida, travessia. E Milton, com sua voz e sua arte, continua nos guiando por essa jornada.
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