Crítica | Em 'Morra, Amor', Lynne Ramsay traduz a prisão do corpo feminino em audiovisual
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Crítica | Em ‘Morra, Amor’, Lynne Ramsay traduz a prisão do corpo feminino em audiovisual

Em Morra, Amor, a diretora Lynne Ramsay confirma que seu verdadeiro território de interesse são os abismos internos. Quem conhece sua filmografia – marcada pela sondagem psicológica de obras como “Precisamos Falar Sobre o Kevin” – já espera que o terror aqui não virá de entidades sobrenaturais. Ele emerge, muito mais sutil e devastador, da desconexão entre o papel social imposto e a identidade que se esfacela em silêncio. O filme, adaptação do livro de Ariana Harwicz, é um mergulho sensorial na psique de Grace (Jennifer Lawrence), onde a linguagem cinematográfica é utilizada não para contar uma história linear, mas para simular a experiência direta do desespero. O resultado é uma obra de beleza árida e desconforto penetrante, cuja força e fraqueza nascem da mesma obsessão: o de tornar visível o colapso invisível da alma.

No longa, o casal jovem, Grace e Jackson (Robert Pattinson), se muda para uma casa rural, isolada no interior, para aguardar o nascimento do primeiro filho. Ramsay, em parceria com os roteiristas Enda Walsh e Alice Birch, desmonta qualquer idealização da vida rural ou da maternidade. O campo, amplo e ventoso, não significa liberdade, mas um vazio que ecoa o interior da protagonista.

A casa, grande e cheia de luz natural, é filmada com uma sensação opressiva de enclausuramento. Um dos grandes trunfos do filme está justamente nesta tradução visual de um estado psicológico. O diretor de fotografia usa uma razão de aspecto quase quadrada (1.33:1), que naturalmente restringe o campo de visão, e enquadramentos que frequentemente aprisionam Grace atrás de portas, janelas ou nos cantos do quadro. A câmera não a acompanha com empatia; ela a observa, a vigia, como se fosse mais um olhar julgador do mundo sobre ela.

Esta escolha formal é central para entender a proposta. Em vez de um melodrama sobre uma “mulher à beira de um ataque de nervos”, Ramsay opta por um anti-dramatismo onde a catástrofe é lenta, íntima e silenciosa. Não há discursos ou revelações bombásticas. A narrativa se estrutura em fragmentos, em cenas que mais parecem lampejos de memória ou surtos de percepção. A montagem, por vezes com planos longuíssimos onde o tempo parece parar, por vezes com cortes abruptos que nos arrancam de uma situação, espelha perfeitamente a desconexão de Grace com a realidade e a perda do sentido de continuidade. É uma técnica arriscada, ao exigir do espectador uma entrega quase total à subjetividade da personagem, abrindo mão da convencional âncora narrativa.

É nesse terreno movediço que a atuação de Jennifer Lawrence se ergue como coluna vertebral. Ela constrói Grace a partir de microgestos, olhares perdidos, suspiros contidos e uma fisicalidade que oscila entre a letargia e a impulsividade animal. Lawrence consegue transmitir, sem uma palavra, o peso esmagador das expectativas, de ser a mãe perfeita, a esposa presente, a mulher que deve encontrar felicidade plena naquele cenário. Sua angústia não é discursada; está no modo como ela toca o próprio corpo como se fosse um estranho, na forma como encara o marido com uma mistura de desejo e repulsa, ou no olhar vazio que contradiz um “estou bem” dito à força. É uma performance de uma honestidade brutal, que evita a caricatura e nos obriga a encarar o desespero existencial de frente.

Robert Pattinson, continuando sua fascinante trajetória de desconstrução de sua imagem, compõe um Jackson que é, talvez, a figura mais trágica em sua normalidade. Ele não é um vilão, mas um homem comum, emocionalmente impotente, que interpreta o sofrimento da mulher como um problema de logística ou desordem doméstica. Sua tentativa de “consertar” as coisas – trazendo um cachorro, reorganizando a casa – é simbolicamente poderosa: ele lida com sintomas externos enquanto ignora completamente o caos interno. A falta de comunicação entre eles não é feita de brigas, mas de silêncios e olhares que não se encontram. Pattinson traz uma ausência palpável, e essa ausência é o combustível para a combustão lenta de Grace.

A trilha sonora e o design de som são personagens à parte. O filme utiliza de uma trilha minimalista, quase esparsa, que surge mais como um zumbido interno da mente de Grace do que como um acompanhamento emocional externo. Os ruídos ambientes, porém, são amplificados com o vento constante que assovia, o rangido da casa, o latido insistente do cachorro, a respiração ofegante. Tudo isso cria uma textura sonora de paranoia e hiperconsciência, mergulhando-nos na sensação de que Grace está constantemente à beira de um ataque sensorial. É uma escolha técnica brilhante para traduzir a ansiedade e o isolamento.

No entanto, é justamente nesse compromisso radical com a interioridade que Morra, Amor encontra seus pontos de atrito. A escolha por uma estrutura tão fragmentada e repetitiva, embora teoricamente justificada, pode, na prática, levar a uma certa exaustão narrativa. A obra às vezes parece andar em círculos, reiterando a mesma angústia com variações de intensidade, mas sem necessariamente aprofundá-la ou conduzi-la a novos patamares de reflexão. A sensação de claustrofobia, inicialmente tão potente, pode, para alguns espectadores, tornar-se retórica. A direção, impecável em cada quadro, parece tão focada em capturar a sensação do colapso que, em momentos, negligencia a construção de uma trajetória que dê peso e consequência a cada novo fragmento apresentado.

Além disso, a abordagem altamente estilizada e onírica – marcada por sequências como a floresta em chamas ou os closes extremos e distorcidos –, embora criativa, pode criar um distanciamento. Filmes como “Uma Mulher Sob Influência”, de John Cassavetes, ou “Wanda”, de Barbara Loden, ao optarem por um realismo cru, conseguiam uma imersão quase insuportável na carne e no osso daquelas mulheres. Em Morra, Amor, o constante trabalho de ornamentação visual, por mais belo que seja, pode colocar uma camada de vidro entre nós e Grace. A forma, por vezes, ameaça engolir o conteúdo. A maternidade como condição social opressiva é mais sugerida por metáforas visuais poderosas do que explicitamente enfrentada em suas complexidades práticas e relacionais.

A conclusão do filme, no entanto, resgata sua potência humana. Ela fala menos sobre um destino específico e mais sobre uma falha ética fundamental: a incapacidade de ver verdadeiramente o outro. Morra, Amor é, no fundo, um retrato da solidão a dois, da depressão pós-parto como um buraco existencial que a medicina e os clichês sociais não conseguem preencher, e do corpo feminino como território de batalha entre o desejo individual e as obrigações coletivas.

Sua grande questão não é se Grace é uma heroína ou uma anti-heroína, mas se a sociedade deixa espaço para uma mulher ser simplesmente uma pessoa, com suas fissuras e fúrias. Ramsay não oferece consolo. A experiência pode ser árdua e, em certos trechos, repetitiva, mas a cicatriz que ela deixa é a prova de que o filme, ao menos em parte, conseguiu atingir seu objetivo mais profundo: fazer do cinema um lugar para sentir, e não somente para assistir.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.