Crítica | Ne Zha 2 confirma o poder do cinema chinês ao unir espetáculo pop e mitologia ancestral
A2 Filmes/Divulgação

Crítica | Ne Zha 2 confirma o poder do cinema chinês ao unir espetáculo pop e mitologia ancestral

Na véspera da cabine de imprensa de Ne Zha 2: O Renascer da Alma, assisti o primeiro longa, lançado em 2019 e fiquei encantado ao vê-lo. Esse encantamento, que me pegou de surpresa, foi o que tornou ainda mais especial a experiência de assistir à continuação. Porque não se trata apenas de um filme que mira o entretenimento; é uma obra que reafirma como a cultura pop pode dialogar com mitologias ancestrais sem esvaziá-las, encontrando aí uma força rara no cinema de animação contemporâneo.

O que imediatamente chama a atenção em Ne Zha 2 é a confiança com que o diretor Yu Yang, também conhecido como Jiaozi, conduz a narrativa. Ele não tem medo de jogar o espectador em um turbilhão de nomes, deuses, dragões e lugares, como se dissesse: “entre nesse mundo e se permita ser guiado pelo espetáculo”. Essa escolha pode soar arriscada, principalmente para quem não tem o primeiro filme na memória, mas há algo de honesto nessa imersão. Yang acredita na capacidade do público – em sua maiorial infantojuvenil – de se perder e, ainda assim, encontrar sentido no meio do caos.

O Renascer da Alma começa quase imediatamente após dos acontecimentos do primeiro filme. Assim, as almas de Ne Zha e Ao Bing são salvas, mas seus corpos enfrentam a ruína. Para lhes dar uma nova vida, Taiyi Zhenren recorre à mística lótus de sete cores em uma tentativa de reconstruí-los e mudar seus destinos. Em meio a isso, conhecemos mais sobre os Imortais e como chegar até lá.

Tecnicamente, o filme impressiona. A fotografia, mesmo em um produto animado, tem peso fundamental. Os contrastes entre os cenários marítimos, os palácios dourados e os vilarejos humanos não apenas constroem uma geografia visual clara, mas também reforçam as tensões entre mundos em conflito. A iluminação digital é usada de maneira generosa, quase barroca, criando imagens que parecem saídas de pinturas em movimento. Há sequências em que a saturação das cores intensifica a energia da ação, enquanto em momentos mais emotivos os tons frios assumem o protagonismo, preparando o terreno para a catarse.

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A direção de arte não dá espaço para a preguiça ou para o genérico; cada detalhe, desde a armadura de um dragão até a textura da água que se choca contra as rochas, foi pensado com cuidado. É um cinema de animação que não economiza no virtuosismo técnico, mas que sabe justificar esse virtuosismo ao serviço da narrativa. A grandiosidade nunca é vazia, porque está sempre atrelada a personagens que carregam dramas palpáveis, mesmo que sejam deuses ou monstros.

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No campo da montagem, percebe-se uma cadência que alterna o ritmo frenético das batalhas com respiros estratégicos, em que a relação entre Ne Zha e Ao Bing e com sua família ganha profundidade. Esse equilíbrio é essencial para que o filme não se transforme em um desfile cansativo de efeitos. No entendo, vale ressaltar que a escalada do fim do segundo até para o terceiro há sim um excesso de cenas de ação. O que, definitivamente, não é ruim, mas dá um certo desgaste.

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Voltando para algo que já pincelei no texto na introdução dess maneira como o filme combina espetáculo pop com respeito à tradição cultural chinesa. É fácil identificar as referências à literatura clássica, especialmente à saga “A Investidura dos Deuses”, mas o longa não se contenta em ser uma adaptação reverente. Ele traduz mitologia em ritmo de blockbuster, criando algo que poderia ser comparado ao que Hollywood fez com os super-heróis, mas com uma diferença fundamental: há uma ligação orgânica entre mito e identidade nacional, que explica em parte o sucesso avassalador do filme nas bilheteiras.

A trilha sonora reforça esse caráter híbrido. Ora grandiosa, com corais e percussões que evocam o épico, ora delicada, acompanhando os momentos íntimos entre personagens, ela funciona como ponte entre tradição e modernidade. O som não apenas intensifica a ação, mas também dá textura às pausas emocionais, lembrando o espectador de que, por trás dos deuses e monstros, há vínculos humanos em jogo. Fora isso, há essa rima que a trilha sonora faz com a própria relação entre Ne Zha e Ao Bing, que são avatares do yin e yang.

Há, claro, alguns pontos que podem dividir opiniões. O humor, por exemplo, continua apelando para piadas escatológicas e momentos de estranhamento cultural que talvez não funcionem tão bem fora da China. Mas mesmo esses excessos parecem fazer parte do DNA da obra, lembrando que, por mais universal que seja o espetáculo, estamos diante de um produto cultural específico, enraizado em sua origem. Esse enraizamento, longe de ser um obstáculo, é justamente o que dá ao filme sua autenticidade.

Comparando com o primeiro longa, minha impressão é que Ne Zha 2 é mais ousado, mais grandiloquente, mas talvez menos coeso emocionalmente. O encanto que senti ao assistir o original ainda me parece insuperável. Porém, é justamente essa comparação que revela a força da franquia, cada filme amplia o horizonte, arriscando novos caminhos sem perder a essência. Ne Zha continua sendo um personagem que representa tanto a rebeldia juvenil quanto a busca por pertencimento, e é nessa dualidade que o público se encontra.

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Felizmente Ne Zha 2 não é apenas um marco comercial, mas um sintoma do quanto o cinema chinês já ocupa espaço central no imaginário global. Ao ultrapassar marcas históricas de bilheteria, o filme não apenas rivaliza com Hollywood, mas sugere uma mudança de eixo cultural. Mais do que números, o que fica é a sensação de que estamos diante de um cinema que sabe olhar para suas raízes enquanto fala a linguagem universal do entretenimento.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.