Crítica | Nickel Boys: uma jornada visual e emocional através do olhar
Amazon MGM Studios

Crítica | Nickel Boys: uma jornada visual e emocional através do olhar

O cinema, em sua essência, é uma arte que nos convida a ver o mundo por outros olhos. E é exatamente isso que RaMell Ross propõe em Nickel Boys, sua adaptação do premiado romance de Colson Whitehead, no Brasil traduzido como “O Reformatório Nickel”. O filme não é apenas uma narrativa sobre injustiça racial e trauma; é uma experiência sensorial que nos coloca dentro da pele de seus personagens, desafiando-nos a sentir, mesmo que por breves momentos, o peso de uma realidade que muitos prefeririam ignorar.

A história se passa na década de 1960, em meio ao turbulento cenário dos direitos civis nos Estados Unidos. Elwood, um jovem negro interpretado por Ethan Herisse, é injustamente enviado para o reformatório Nickel Academy, um lugar que, sob a fachada de instituição educacional, esconde abusos sistemáticos e violência racial. Acompanhamos sua jornada através de uma câmera subjetiva que nos faz enxergar o mundo literalmente pelos olhos dele. Essa escolha não é apenas pela tecnicidade; é profundamente simbólica.

Crítica | Nickel Boys: uma jornada visual e emocional através do olhar
Amazon MGM Studios

Nos primeiros minutos do filme, não sabemos como Elwood se parece. Vemos o mundo através de seus olhos, mas não temos acesso ao seu rosto ou à cor de sua pele. Essa estratégia é brilhante, pois nos permite experimentar a humanidade crua do personagem antes que o peso da racialização entre em cena. Quando ele finalmente olha para seu próprio braço e vê a pele negra, o filme ganha uma nova camada de significado. A partir desse momento, a narrativa não é mais apenas sobre um jovem; é sobre um jovem negro em um mundo que o oprime por causa dessa característica.

Por conta dessa ideia de perspectiva, obviamente a fotografia de Nickel Boys se torna sua âncora narrativa. Ross utiliza uma paleta de cores que oscila entre o quente e o frio, refletindo a dualidade da experiência de Elwood. As cenas iniciais, que mostram sua vida antes do reformatório, são banhadas por tons dourados e suaves, evocando uma sensação de inocência e esperança. Já no reformatório, a paleta se torna mais sombria, com tons de cinza e azul que transmitem a frieza e a brutalidade do lugar. A luz do sol, que antes parecia acolhedora, agora é filtrada por grades e janelas sujas, simbolizando a perda da liberdade.

A câmera subjetiva, no entanto, é o verdadeiro coração do filme. Ao nos colocar dentro da perspectiva de Elwood, Ross nos força a confrontar a realidade de sua existência. Não somos mais espectadores passivos; somos cúmplices de sua jornada. Essa técnica é particularmente impactante nas cenas de violência. Quando Elwood é agredido, a câmera treme e desfoca, como se estivéssemos compartilhando sua dor e desorientação. É uma abordagem que evita o voyeurismo, comum em filmes que retratam sofrimento, e em vez disso nos convida a sentir empatia de uma maneira visceral.

Mas Nickel Boys não se limita à perspectiva de Elwood. Ross alterna entre os pontos de vista de Elwood e Turner, seu colega de reformatório interpretado por Brandon Wilson. Essa mudança de perspectiva é crucial, pois nos permite ver Elwood através dos olhos de Turner e vice-versa. É uma maneira inteligente de explorar suas relações e de destacar como a opressão afeta cada um de maneira diferente. Turner, mais cínico e pragmático, serve como contraponto ao idealismo de Elwood, criando um diálogo interno que enriquece a narrativa.

No entanto, essa alternância de perspectivas nem sempre é suave. Em alguns momentos, as transições parecem abruptas, quebrando o fluxo emocional da história. Essa é uma das poucas falhas do filme, que em sua busca pela inovação acaba sacrificando um pouco da coesão narrativa. Ainda assim, é um risco que vale a pena, pois amplia o escopo da experiência e nos lembra que a luta contra a injustiça não é uma jornada solitária, mas coletiva.

Outro aspecto notável é a maneira como Ross lida com o tempo. O filme não segue uma estrutura linear; em vez disso, ele salta entre passado, presente e futuro, criando uma sensação de fluidez que reflete a natureza fragmentada da memória. Essas elipses temporais são reforçadas pelo uso de metáforas visuais, como o trem que aparece repetidamente ao longo do filme. O trem, que avança inexoravelmente, simboliza a passagem do tempo e a impossibilidade de escapar do passado. É uma imagem poderosa que ressoa tanto no nível narrativo quanto no emocional.

Crítica | Nickel Boys: uma jornada visual e emocional através do olhar
Amazon MGM Studios/Orion Pictures

Ethan Herisse e Brandon Wilson entregam performances comoventes, capturando a vulnerabilidade e a resiliência de seus personagens. Aunjanue Ellis-Taylor, como Nana, traz uma presença maternal que contrasta com a frieza do reformatório, oferecendo um vislumbre de esperança em meio ao desespero.

Mas talvez o maior mérito de Nickel Boys seja sua capacidade de transformar uma história específica em algo universal. Ao nos colocar dentro da perspectiva de Elwood e Turner, Ross nos lembra que a luta contra a injustiça é uma experiência compartilhada. Não importa se somos negros, brancos ou de qualquer outra cor; o filme nos convida a reconhecer nossa humanidade comum e a nos solidarizar com aqueles que sofrem.

E é aqui que o filme alcança sua maior força. Ao nos fazer ver o mundo através dos olhos de Elwood, Ross não apenas nos mostra a dor de ser negro em uma sociedade racista; ele nos faz sentir essa dor. É uma experiência que pode ser desconfortável, mas também profundamente necessária. Em um mundo onde a violência racial continua a ser uma realidade, Nickel Boys serve como um lembrete poderoso de que a empatia é o primeiro passo para a mudança.

O filme pode terminar, mas a jornada que ele inicia dentro de nós continua. E talvez seja essa a maior conquista de uma obra que, em sua essência, é sobre olhar para o mundo e decidir o que fazer com o que vemos.

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