A nova versão de O Beijo da Mulher Aranha, dirigida por Bill Condon, é uma ousada reinterpretação de um clássico que atravessa a literatura, o teatro e o cinema. O filme, inspirado no romance de Manuel Puig e na premiada adaptação musical da Broadway, não apenas revisita uma obra essencial, mas a reinventa com uma intensidade visual e emocional que, apesar de suas limitações, se revela um convite irresistível ao escapismo e à reflexão sobre o que significa amar em tempos de opressão.
Esta nova adaptação tem um tom distinto, que mescla o musical com o drama político, mas se afasta da versão de 1985 de Héctor Babenco, que era mais realista e, por isso, mais cruel. Enquanto a versão anterior foi um estudo de personagens em um ambiente de confinamento insuportável, onde a tortura e a resistência política dominavam, a de Condon traz uma fantasia entrelaçada com a crua realidade, criando um contraste visual de tirar o fôlego. O mundo dentro da prisão é sombrio, cinza, sem esperança, mas os momentos de fuga, proporcionados pela obsessão de Molina (vivido por Tonatiuh) por uma estrela de cinema, são uma explosão de cores saturadas que reverberam como um grito de liberdade.
A fotografia de Tobias A. Schliessler é fundamental nesse aspecto. O contraste entre a prisão e as sequências da fantasia é nítido e preciso. Enquanto a prisão de Valentín (Diego Luna) e Molina é um espaço claustrofóbico e monocromático, o mundo idealizado de Ingrid Luna (uma performance exuberante de Jennifer Lopez) brilha com a saturação dos tons, como se estivéssemos dentro de um musical de Hollywood da era dourada, mas com um toque de Almodóvar nas cores e no estilo.

A transição entre os dois mundos é, muitas vezes, um dos pontos mais cativantes da direção de Condon, que usa esses contrastes não apenas para fins estéticos, mas como um reflexo da própria luta interna de seus personagens. A prisão é um lugar de privação, onde os corpos estão imersos no sofrimento; já a fantasia, é um campo de liberdade, onde o desejo e a dor se tornam manifestações da alma humana.
No entanto, apesar dessa técnica brilhante, o que realmente faz o filme ressoar é a maneira como ele retrata a relação entre os dois protagonistas. Tonatiuh brilha como Molina, um personagem que mistura doçura e vulnerabilidade com uma aguda necessidade de escape. O ator, que em sua estreia nos cinemas traz à tona uma performance delicada e intensa, consegue, em vários momentos, equilibrar a fragilidade de seu personagem com a leveza da fantasia, uma leveza que serve como um alicerce para sua relação com Valentín. Se por um lado Molina é o personagem que mais se entrega ao onírico e ao prazer escapista, Valentín é o oposto. Diego Luna – que, curiosamente, lembra seu papel em “Andor” –, o revolucionário está em constante negação do mundo que o cerca, utilizando o sofrimento como uma maneira de manter sua conexão com seus ideais. A química entre os dois atores é inegável e é ela que traz a tensão necessária para que o filme realmente funcione. A relação deles evolui de maneira sutil, mas poderosa, à medida que as dificuldades e o isolamento se transformam em uma forma de afeto, talvez até de amor.

A música de John Kander e Fred Ebb, que originalmente serviu para pontuar as emoções de uma época de terror, aqui se torna uma válvula de escape mais explícita. Embora as canções não sejam tão inesquecíveis quanto as de outras obras dos compositores, como “Cabaret” ou “Chicago”, elas se encaixam bem na proposta do filme, reforçando a dicotomia entre a realidade brutal e a fantasia libertadora.
É no tratamento do musical, no entanto, que Condon se distancia das versões anteriores. A primeira coisa que salta aos olhos são as imersivas sequências de dança, um espetáculo de grandiosidade e excesso. Jennifer Lopez, na pele da diva Ingrid Luna, encarna perfeitamente a mulher poderosa, sedutora e ao mesmo tempo trágica que Molina idealiza. Em uma das cenas mais memoráveis, ela gira no centro de um salão com um grupo de dançarinos, suas roupas e gestos combinando o glamour de Hollywood com uma melancolia que permeia toda a narrativa. Mesmo que a música, por vezes, não seja tão marcante quanto se esperava, as coreografias e os números visuais criam uma atmosfera de puro escapismo, onde a realidade se dissolve em um turbilhão de brilho e cores.

Há, porém, um aspecto que não pode ser ignorado: o tom do filme. O uso do musical para contar uma história tão sombria poderia facilmente se perder na falta de sintonia entre os elementos dramáticos e os momentos de brilho. Condon consegue equilibrar as duas pontas com destreza. O número musical que leva o filme ao seu ápice, por exemplo, é entrelaçado com uma carga emocional que faz o público refletir sobre o preço que se paga pelo prazer. O toque de comédia, especialmente nas interações de Tonatiuh com Luna, evita que o filme caia no melodrama excessivo, mas também não o impede de explorar as vulnerabilidades de seus personagens com sensibilidade.
Ainda que O Beijo da Mulher Aranha não seja um filme memorável, seu impacto visual e emocional não pode ser negado. O longa nos oferece um olhar renovado sobre uma história que, ao longo dos anos, se consolidou como um símbolo de resistência e amor em tempos de opressão. Condon faz uma adaptação eficaz, que consegue transitar com sucesso entre momentos de fuga e realismo brutal, misturando fantasia e política de forma envolvente e visualmente marcante. No entanto, como foi destacado, mesmo com momentos memoráveis e cenas grandiosas, talvez o filme não permaneça tanto tempo na memória dos espectadores, especialmente pela relativa suavidade de sua música, que não consegue carregar o peso de outras trilhas imortalizadas.
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