Existe um certo tipo de memória afetiva que nasce não com os grandes clássicos premiados, mas nas madrugadas silenciosas da televisão aberta, nas prateleiras poeirentas das videolocadoras, nas sessões de domingo à tarde que colavam os olhos no tubo da TV com personagens de moral dúbia e aventuras exuberantes. O cinema de gênero, com seus espiões galantes, vilões mascarados e mulheres fatais, formou o imaginário de muitas gerações. E é justamente nesse universo nostálgico – porém profundamente estilizado – que O Brilho do Diamante Secreto, longa dirigido por Hélène Cattet e Bruno Forzani, mergulha com fascínio quase infantil.
O Brilho do Diamante Secreto incia na elegância ensolarada da Riviera Francesa, o enigmático John D., vivido por Fábio Testi, vê sua tranquila rotina de charutos e martínis interrompida por um brilho inesperado – um diamante reluzindo no corpo de uma mulher ao sol. Esse pequeno reflexo desperta nele uma torrente de lembranças: fragmentos desconexos de sua juventude como espião, entre missões secretas, vilões mascarados e paixões perigosas. A dupla belga de diretores transforma esse retorno às memórias em um espetáculo visual alucinatório, onde passado e presente se misturam em um mosaico estilizado, desconexo e deliberadamente artificial, reverenciando (e distorcendo) o universo do eurospy com charme e caos.
Mas não se engane com essa aparência lúdica: há aqui um projeto formal minucioso e intencional. O que o casal de diretores propõe não é simplesmente um revival. Trata-se de uma dissecação afetiva e rigorosa do cinema pulp europeu, das HQs noir de banca de jornal e das produções de espionagem dos anos 60 e 70 – com ênfase no fetichismo estético e na textura visual da película antiga. Desde a primeira sequência, que parece saída de uma animação psicodélica de um Bond perdido, percebemos que a narrativa será apenas uma desculpa para o verdadeiro deleite do filme: o estudo da forma.
É difícil definir com precisão onde começa o enredo e onde termina a brincadeira autorreferente. Há uma mulher encontrada morta na praia, um diamante preso ao corpo, um milionário interessado em seus segredos, um detetive irresistível às mulheres e uma vilã mascarada chamada Serpentik. Mas seria precipitado esperar lógica ou evolução linear dos acontecimentos. O que Cattet e Forzani oferecem é uma espécie de caleidoscópio cinematográfico, em que cada cena é construída como um fragmento visual autônomo, muitas vezes desconectado da anterior, mas sempre pulsando com energia própria.
Essa abordagem se estende à direção de arte e à fotografia, que brilham (literalmente) como protagonistas do filme. A textura da imagem emula a granulação do 35mm, com lens flares emoldurando personagens, halations coloridos derretendo os contornos das luzes e uma paleta saturada que mistura neon com technicolor. Cada plano é milimetricamente calculado para gerar impacto visual – seja por meio de enquadramentos simétricos, seja pelo uso do foco raso para isolar figuras em meio ao caos cenográfico. É o tipo de filme que não economiza na mise-en-scène: figurinos exuberantes, cenários artificiais de estúdio, iluminação teatral e até os movimentos de câmera remetem a um passado encenado com devoção quase religiosa.

Esse preciosismo técnico, entretanto, tem um custo. A montagem – repleta de cortes secos, ângulos zenitais e sobreposições visuais – trabalha mais como uma partitura rítmica do que como cola narrativa. O efeito é hipnótico, mas também vertiginoso. A forma ultrapassa o conteúdo em quase todos os momentos, o que resulta em uma experiência visualmente rica, mas emocionalmente distante. É como se o espectador estivesse preso em um museu sensorial, onde pode tocar os objetos, mas jamais entender plenamente suas histórias.
Ainda assim, não há como negar o prazer que o filme proporciona a quem compartilha do repertório que ele celebra. As referências são inúmeras – de James Bond a Diabolik, passando pelas vinhetas de abertura de filmes de espionagem dos anos 70 e pelas revistas de aventura que traziam detetives com nomes pomposos e vilões com codinomes ameaçadores. A personagem Serpentik, por exemplo, poderia ter saído diretamente das páginas de uma HQ exploitation: uma ladra enigmática, sensual e letal, com máscaras feitas de pele humana e um talento nato para desaparecer na fumaça do caos.

Mesmo com tantas referências, o longa não se limita ao pastiche. Ele se permite ironizar e, em alguns momentos, subverter os códigos que abraça. A inversão do male gaze, por exemplo, é perceptível: em vez de objetificar as mulheres como tantas vezes fez o gênero, o filme expõe o corpo do protagonista masculino como objeto de desejo. Há um deslocamento claro de perspectiva – ainda que tímido – que sugere um olhar contemporâneo sobre um universo tradicionalmente machista. Porém, o gesto é sutil demais para provocar uma real ruptura; funciona mais como um aceno do que como crítica consolidada.

Narrativamente, a obra flerta com o nonsense. Cenas se repetem, personagens desaparecem sem explicação, reviravoltas surgem apenas para alimentar o espetáculo visual. Essa desconstrução deliberada da lógica do roteiro faz com que O Brilho do Diamante Secreto se aproxime do cinema experimental. Em muitos momentos, parece mais uma instalação de videoarte do que um filme tradicional – um projeto concebido para o impacto sensorial, não para a compreensão racional.
E talvez seja justamente aí que o filme revela sua maior ambição. Não se trata apenas de um exercício de estilo, mas de uma tentativa de investigar o que ainda pode ser extraído de um gênero cinematográfico esgotado. Como numa arqueologia estética, Cattet e Forzani escavam os símbolos, os arquétipos, os códigos visuais e sonoros da cultura pop do século passado para reconfigurá-los com as ferramentas do presente. Não há espaço para evolução de personagens ou desenvolvimento psicológico – tudo é imagem, forma, impacto. O herói não muda, a vilã não revela sua essência, o mistério nunca se resolve – e tudo bem. O filme não quer contar uma história, quer explorar o que uma história parece ser.
Isso também se manifesta na trilha sonora e nos efeitos sonoros, usados com requinte: músicas originais em tom de paródia, temas orquestrados que poderiam estar em qualquer abertura de 007, silêncios abruptos, ruídos exagerados. O som funciona como extensão da mise-en-scène, reforçando o caráter performático de cada gesto e cada fala.
É inegável que o projeto seja feito com esmero, cuidado técnico e profundo conhecimento cinematográfico. Os diretores sabem exatamente onde estão pisando, e não há nada de acidental no excesso estético que exibem. Cada escolha é calculada para construir um universo onde o passado é reciclado com reverência, mas também com certo desprendimento. Eles não querem reviver a época de ouro do eurospy – querem expô-la, distorcê-la, ampliá-la até que seus contornos se tornem irreconhecíveis.
O Brilho do Diamante Secreto é um filme que brilha mais pelo reflexo do que pela luz própria. Ele se mostra apaixonado demais por tudo o que remete, a ponto de perder a oportunidade de dizer algo novo sobre aquilo que homenageia. E, ainda assim, é difícil resistir ao seu charme visual, à sua engenharia de planos e à sua estética cuidadosamente construída. Porque, mesmo quando a substância se esconde atrás da forma, é impossível negar o quanto essa forma foi pensada, lapidada – como um diamante que, embora talvez não ilumine o caminho, ainda assim sabe como ofuscar nossos olhos.
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