Crítica | O Ensaio – 2ª temporada: Quando o criador perde o controle da criação
HBO/Reprodução

Crítica | O Ensaio – 2ª temporada: Quando o criador perde o controle da criação

Existe um momento, na 2ª temporada de O Ensaio, em que o próprio Nathan Fielder observa o resultado de uma de suas mais elaboradas simulações com um olhar entre o fascínio e a paralisia. É como se, pela primeira vez, ele percebesse que seu próprio experimento ganhou autonomia. Que algo nasceu ali, entre a reconstrução de um desastre aéreo e o silêncio constrangedor de dois homens presos numa cabine de comando. Que o plano, por mais meticuloso que fosse, não previa o que emergiria quando a ficção começasse a imitar não apenas a vida, mas a consciência.

O Ensaio, criado, dirigido, roteirizado e protagonizado por Nathan Fielder, volta com uma 2ª temporada que dissolve de vez qualquer fronteira entre documentário, ficção e performance televisiva. A linha já tênue da 1ª temporada – marcada por ensaios sociais hiperencenados que visavam ajudar pessoas comuns a enfrentarem conversas difíceis – agora é completamente ignorada em favor de algo muito mais inquietante: uma tentativa sincera de compreender a falibilidade humana diante do controle. A série, exibida pela HBO, se recusa a ser rotulada. Não é uma comédia, tampouco um drama tradicional. Está mais próxima de uma instalação artística em forma seriada, que usa a linguagem audiovisual como ferramenta para vasculhar as neuroses e limites do próprio criador.

Tecnicamente, é uma obra impressionante. A fotografia acompanha a lógica da simulação: tudo é real demais para ser ficção, mas falso demais para parecer vida. A estética se vale de luzes uniformes, ambientes controlados, cenários que, embora minuciosamente reconstruídos, deixam escapar pequenas pistas de que aquilo é apenas uma réplica. É o caso do cockpit de avião que ocupa boa parte dos episódios: uma cabine construída em tamanho real, posicionada diante de uma gigantesca tela curva de LED. É tecnologia de ponta a serviço da inquietação, gerando uma ambientação que não se satisfaz em apenas parecer crível – ela exige que acreditemos nela, mesmo sabendo que estamos diante de uma farsa.

Crítica | O Ensaio – 2ª temporada: Quando o criador perde o controle da criação
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A direção de Fielder é precisa como a de um cirurgião obcecado. Cada plano tem uma função, cada corte parece ser estrategicamente pensado para manipular a percepção do espectador. A montagem, especialmente, revela-se fundamental ao alternar entre reencenações de desastres reais e os bastidores desses processos, o ritmo da série nunca se acomoda. Há um desconforto constante, uma espécie de ruído entre o que se mostra e o que se oculta. Não há uma única resposta fácil – apenas perguntas cada vez mais desconcertantes.

A proposta de Fielder nesta temporada – entender os mecanismos psicológicos que contribuem para acidentes aéreos – soa absurda à primeira vista. Mas é exatamente nesse absurdo que a série encontra seu melhor. Ao investigar a falta de comunicação entre pilotos e copilotos como possível causa de falhas fatais, O Ensaio se transforma num estudo antropológico sobre o medo, a vergonha e a hierarquia. São sentimentos humanos, mundanos, que, colocados sob uma lente de aumento cinematográfica, ganham dimensões trágicas e cômicas ao mesmo tempo. E é aí que reside um dos grandes triunfos da obra: ao tratar de temas complexos com métodos inusitados, ela transcende gêneros e se estabelece como um experimento artístico.

Em termos de atuação, Fielder continua explorando com maestria sua persona pública: a do homem desajeitado, contido, quase mecânico, mas movido por uma compulsão emocional profunda. O seu rosto, sempre contido, diz muito mais do que aparenta. Ele interpreta a si mesmo como se estivesse sob julgamento constante, numa performance que beira o autoexorcismo.

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Ao se colocar diante do próprio reflexo – seja nas simulações, seja nas projeções de suas inseguranças – Nathan torna-se mais do que um personagem. A performance dos outros participantes, por sua vez, oscila entre o improviso e o ensaio rigoroso, criando uma tensão curiosa entre espontaneidade e manipulação. Em um dos episódios mais marcantes, vemos pilotos reais participarem de um show de talentos fictício, criado apenas para que aprendam a dar e receber críticas. É surreal, mas funciona, pois escancara a disfuncionalidade das interações humanas sob pressão.

Talvez o momento mais emblemático desta temporada seja aquele em que Fielder decide reencenar a vida do capitão Sully Sullenberger, herói do “Milagre do Hudson”. Mas ao tentar habitar a pele de um homem que salvou mais de 150 pessoas após uma falha mecânica, Nathan se vê forçado a revisitar sua própria história – uma espécie de colapso metafísico entre criador e criação. É impossível não lembrar de “Close-Up”, de Abbas Kiarostami, onde a identidade e a ficção colidem de maneira similar. A diferença aqui é que o palco não é um tribunal, mas um set de filmagens onde tudo é possível e nada é confiável.

A série nos coloca diante de uma questão essencial: o que acontece quando o criador se vê engolido pela própria criação? Se a 1ª temporada parecia ensaiar respostas para os dilemas sociais mais banais, esta 2ª encara os medos mais profundos de forma frontal. E faz isso com uma coragem estética e emocional rara. Em O Ensaio, Fielder não está apenas simulando realidades, ele está nos convidando a viver dentro delas. E ao fazer isso, a obra, que começou como uma busca por controle absoluto, termina como um lembrete devastador de que a vida é, acima de tudo, imprevisível.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.