O cinema, assim como a alta gastronomia que o filme O Segredo da Chef retrata, é uma arte de equilíbrio. Um prato perfeito depende da precisão milimétrica de cada grama, do tempo exato de cada cozimento, da harmonia entre ácido e doce, textura e sabor. Da mesma forma, um filme que se propõe a ser um drama musical rural – fusão de gêneros tão delicada quanto um soufflé – vive ou morre pela mão segura de quem o conduz. No longa-metragem de estreia da diretora Amélie Bonnin, baseado em seu próprio curta “Bye Bye”, testemunhamos uma cozinheira talentosa, a chef Cécile (Juliette Armanet), lutando para impor ordem e sofisticação a um mundo que insiste em ser caótico, familiar e… musical. E é justamente nesta tentativa de controle, tanto da personagem quanto da narrativa, que reside o fascínio e a contradição central do filme.
A história é um caldo rico de possibilidades dramáticas. Cécile, estrela emergente do mundo gastronômico prestes a inaugurar seu restaurante em Paris, é forçada a um retorno às origens quando seu pai, Gérard (François Rollin), dono de um restaurante simples em um posto de gasolina, sofre um novo ataque cardíaco. A ironia é saborosa desde o início: a paixão que levou Cécile aos píncaros da cozinha de autor, repleta de técnicas como confit e emulsões, brotou no ambiente antagônico da comida simples e funcional do pai. A fotografia compreende bem essa dualidade, trabalha com paletas visuais distintas. A Paris de Cécile é filmada com cores mais contidas, linhas limpas e uma iluminação controlada, quase clínica, que reflete seu desejo de perfeição. Já a província francesa é banhada por uma luz mais quente, por vezes crua, com enquadramentos mais soltos que capturam a desordem afetiva da paisagem e das relações.
Esse contraste é a alma do filme e é onde Bonnin demonstra seu olhar mais certeiro. A direção de arte acentua essa divisão: de um lado, a cozinha imaculada e metálica do futuro restaurante; de outro, a cozinha desgastada e cheia de utensílios com história do restaurante do pai. A montagem, no entanto, por vezes parece hesitar em costurar essas duas realidades de forma mais orgânica. Os cortes entre os universos são claros, mas a transição emocional da protagonista, e consequentemente do espectador, nem sempre é tão fluida.

O grande desafio – e a aposta ousada – de O Segredo da Chef é seu DNA de musical. Aqui, a obra caminha por uma linha tênue entre o encantador e o desconexo. Diferente de musicais tradicionais onde os números são coreografados espetacularmente, Bonnin opta por uma integração mais naturalista, quase íntima. As canções, em sua maioria grandes sucessos da música pop francesa reinterpretados, surgem como extensões diretas do estado emocional dos personagens. Eles não cantam para a câmera, mas com a câmera, em momentos de euforia, nostalgia ou profunda crise. A canção não é uma ruptura da realidade diegética – aquela que existe no universo do filme –, mas uma intensificação dela.
Esta escolha é cinematograficamente interessante. A diretora utiliza planos fechados, muitas vezes com a câmera quase estática, capturando a vulnerabilidade nos rostos dos atores enquanto cantam. Não há coreografias complexas, mas pequenos gestos, olhares trocados, suspiros que se tornam versos. Essa técnica aproxima o espectador da turbulência interior de Cécile, especialmente quando ela lida com a notícia da gravidez inesperada e o reencontro com o amor antigo, Raphaël (Bastien Bouillon). No entanto, para um público menos acostumado às liberdades do gênero, essa intermitência dos números musicais pode soar esparsa e até mesmo desconexa, como se o filme não se decidisse entre ser ou não um musical. É uma reinvenção do formato que, embora nobre, nem sempre consegue sustentar o ritmo narrativo, deixando alguns arcos de lado, como a relação com a mãe (Dominique Blanc), que pedia mais desenvolvimento.
O elenco, porém, é um trunfo inquestionável. Juliette Armanet, cantora consagrada na França, transita com naturalidade entre a desenvoltura no canto e a expressão dramática. Ela constrói uma Cécile que é muito mais que uma caricata chef estressada; é uma mulher em conflito com suas próprias conquistas, percebendo que a sofisticação que tanto almejou pode ser uma barreira para sentimentos mais básicos e arrebatadores. François Rollin, como o pai teimoso e de coração frágil, é um contraponto perfeito. Sua atuação seca e repleta de gestos cotidianos – um modo de fritar um bife, um olhar de reprovação mascarado de indiferença – comunica volumes sobre uma relação pai-filha marcada mais pelos silêncios do que pelas palavras. A química com Bastien Bouillon também funciona, criando uma tensão romântica crível, que fala mais de passado e possibilidades perdidas do que de um clichê amoroso.
Tecnicamente, o filme brilha em seus detalhes sensoriais. O trabalho de som design é primoroso em construir a textura auditiva dos dois mundos: o ruído metálico e preciso de uma cozinha profissional versus o burburinho acolhedor e desordenado do restaurante provincial. Os close-ups dos alimentos – o brilho de uma redução de vinho, a textura rústica de um purê de batatas – são quase táteis, servindo como metáforas visuais para os temas centrais. A fotografia, já mencionada, cumpre bem seu papel de narrar visualmente o conflito interno da protagonista, embora pudesse se arriscar mais nos momentos musicais, talvez usando movimentos de câmera mais ousados para traduzir a libertação emocional que o canto pretende trazer.

O Segredo da Chef é um prato ambicioso, repleto de ingredientes de primeira qualidade e preparado com evidente carinho. Amélie Bonnin demonstra um olhar sensível para as nuances das relações familiares e para a dor do crescimento, que muitas vezes significa se afastar para se tornar quem se é. A questão que fica, e que torna a crítica válida como ponto de discussão, é sobre a harmonia final desse banquete. A fusão entre o drama realista do retorno às origens e a estilização do musical nem sempre encontra o ponto de emulsão perfeito. As transições tonais podem ser bruscas, e alguns subplots parecem cozidos em fogo muito baixo, sem tempo para desenvolver pleno sabor.
No balanço final, o filme pode não conquistar todos os paladares, mas oferece uma refeição com personalidade suficiente para gerar uma boa conversa após os créditos finais – e, no mundo do cinema e da gastronomia, isso já é um indicativo de que valeu a pena a visita.
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