O Último Azul | Filme de Gabriel Mascaro ganha trailer e data de estreia no Brasil
Vitrine Filmes/Divulgação

Crítica | O Último Azul une distopia, Amazônia e liberdade em uma travessia marcada pela resistência

Assim como um barco que corta lentamente as águas de um rio, O Último Azul me atravessou de maneira profunda. Em mais de seis anos vivendo em São Paulo, a saudade de certas sutilezas da vida nortista sempre bate: a música incidental – com muito tecnobrega – que vem das casas abertas, a solidariedade natural de quem oferece ajuda mesmo sem ser pedido. Os sotaques carregados, as expressões próprias, o jeito de olhar o outro com atenção e acolhimento. Tudo isso pulsa no longa de Gabriel Mascaro, que parece, em muitos momentos, feito de cheiros, sons e texturas que remetem a essa Amazônia que se reconhece de imediato, mas raramente é representada com a devida dignidade no cinema brasileiro.

Leia também:

Em O Último Azul, acompanhamos Tereza, interpretada por Denise Weinberg, uma operária de 77 anos que se recusa a aceitar o destino imposto pelo governo: ser enviada para uma Colônia onde todos os idosos acima dessa idade são confinados sob a promessa de descanso e luxo. Conservadora em suas ideias, mas resistente à perda da própria liberdade, ela parte em uma jornada pelos rios da Amazônia, encontrando personagens que revelam tanto a dureza quanto a beleza de um país que insiste em descartar quem envelhece.

A câmera de Mascaro não se coloca como julgadora, mas como cúmplice; acompanha com respeito uma mulher de 77 anos que, ainda que inserida em um universo distópico, é mostrada como potência, e não como sobra. Esse respeito se manifesta em todas as escolhas de direção. Ao transformar uma idosa operária em protagonista de um “river movie”, Mascaro se recusa a ceder ao que seria esperado; um mergulho em sátiras políticas rasas – como, curiosamente, aconteceu no seu filme antecessor, “Divino Amor”– ou em narrativas de ação com perseguições previsíveis. Ele opta por outra rota, a do deslocamento como experiência estética e existencial. A montagem reforça esse gesto, estendendo os tempos de contemplação e permitindo que o espectador se coloque na mesma cadência dos rios. Os planos longos e as pausas silenciosas não são vazios, mas preenchidos de respiro. O filme pede ao público um tempo diferente, talvez mais próximo do tempo do Norte, que não se confunde com a pressa urbana.

O Último Azul | filme brasileiro concorre ao Urso de Ouro no Festival de Berlim 2025
Guillermo Garza/Desvia / Divulgação

A atuação de Denise é, sem exagero, o coração pulsante do longa. A construção de sua Tereza não é uma heroína: conservadora em suas falas, defensora de valores que ecoam a manutenção de uma ordem social que a oprime, ela não encarna a rebeldia clássica contra o autoritarismo. No entanto, ao resistir à ideia de ser descartada pelo sistema e enviada para uma Colônia destinada a idosos, encontra no próprio corpo a centelha da recusa. Weinberg interpreta essa contradição com delicadeza: não vemos uma líder revolucionária, mas uma mulher que, diante da ameaça à sua autonomia, descobre que o simples ato de se mover já é uma forma de insubmissão.

Essa recusa ganha materialidade na jornada pelos rios amazônicos. A câmera de Mascaro, ao mesmo tempo que flerta com o fantástico – como nas cenas em que a baba azul do caracol é pingada diretamente nos olhos dos personagens –, ancora-se em um naturalismo sensível para retratar o cotidiano de barqueiros, comerciantes e viajantes. Não há exotismo na representação do Norte; ao contrário, existe familiaridade. Os barcos simples, os mercados improvisados, os encontros casuais em pequenos portos compõem uma paisagem que não é pano de fundo, mas parte essencial da narrativa. A fotografia abraça o azul das águas e o verde das matas não como cartão-postal, mas como extensão de uma vivência.

  • Crítica | O Último Azul: Uma travessia amazônica sobre o tempo, a memória e a liberdade
  • Crítica | O Último Azul: Uma travessia amazônica sobre o tempo, a memória e a liberdade
  • Crítica | O Último Azul: Uma travessia amazônica sobre o tempo, a memória e a liberdade

Dentro desse espaço fluido, a amizade feminina surge como força que rompe o isolamento. O último ato é marcado pelo acolhimento outras mulheres que oferecem a Tereza afeto e pistas de fuga. A personagem da barqueira, vivida com vigor por Miriam Socarrás, é um desses encontros que não só iluminam a tela, mas também apontam caminhos de resistência. Ao revelar que conseguiu “comprar sua liberdade”, a personagem abre uma fissura no sistema distópico que ressoa ainda mais forte por ser vivido por uma mulher negra. Essa camada política se articula sem didatismo, apenas pelo poder da sugestão (diferente de momentos mais expositivos nos dois primeiros atos do longa).

Rodrigo Santoro e Adanilo completam o percurso da protagonista, compondo figuras masculinas que não dominam a trama, mas funcionam como contrapontos e companhias temporárias. O barqueiro de Santoro parece ser a figura de um “estrangeiro” – embora o filme nunca confirme isso –, seja pelo sotaque, o jeitão e a forma como ele trata a protagonista, parece não ser daquele espaço. O que contrasta com o personagem de Adanilo com seus excessos, cores e vitalidade, quase como um respiro lúdico diante da aridez da distopia. Ambos são retratados de forma contida, em sintonia com a escolha de não espetacularizar as relações, mas de apresentá-las como fragmentos de encontros possíveis em qualquer viagem.

Tecnicamente, a trilha sonora é um dos elementos mais fortes da obra. Ela não atua como ilustração do que se vê em cena, mas como contraponto ou extensão emocional. Há momentos em que os sons parecem atravessar a pele do espectador, criando uma experiência que permanece na memória muito depois de o filme terminar. Em sintonia, a montagem aposta em sobreposições que dialogam com esse caráter musical, ampliando a dimensão sensorial da narrativa. É nesse casamento entre imagem e som que o filme alcança alguns de seus picos mais poéticos.

O Último Azul se assume, portanto, como uma distopia íntima, que não precisa mostrar diretamente seus tiranos para que o espectador compreenda o peso do autoritarismo. O governo é sentido nas entrelinhas, em propagandas oficiais, em falas distantes. O que importa está no corpo de Tereza, que se nega a aceitar a decrepitude social imposta a todos os que ultrapassam os 75 anos. Ao filmar essa recusa em deslocamento constante, Mascaro dá à personagem uma dignidade rara, ela não busca um destino final, mas a experiência da travessia em si.

O Último Azul | Filme de Gabriel Mascaro ganha trailer e data de estreia no Brasil
Vitrine Filmes/Divulgação

A sensação é de que o filme não apenas mostra uma jornada, mas a compartilha. Tal como o barco que navega em águas incertas, o longa atravessa quem o assiste com a força de uma memória coletiva que insiste em sobreviver. E para mim, que carrego as lembranças do Norte mesmo em meio à vida paulistana, essa travessia foi ainda mais profunda. Se em São Paulo sinto falta das sutilezas de casa, em O Último Azul reencontrei essa cadência afetiva, como se o cinema tivesse me devolvido, ainda que por algumas horas, o ritmo do rio que nunca deixou de correr dentro de mim.

Leia outras críticas:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.