Há histórias, seja no cinema, como na vida, que não cabem em uma narrativa linear. Há verdades que só se revelam quando admitimos que a memória é uma colcha de retalhos — alguns coloridos, outros desbotados, muitos irremediavelmente perdidos. É nesse território movediço que Paul Schrader constrói Oh, Canadá, um filme que não se contenta em ser apenas uma reflexão sobre a morte, mas um mergulho nos meandros daquilo que chamamos de “vida vivida”. Com Richard Gere e Jacob Elordi dividindo o papel de Leonard Fife, um documentarista às portas da finitude, Schrader nos entrega menos uma biografia filmada e mais um quebra-cabeça emocional, onde cada peça é uma versão diferente da mesma pessoa.
O filme começa com um ato de exposição deliberada: Fife, já idoso e doente, aceita ser entrevistado por dois ex-alunos, Malcolm e Diana (interpretados por Michael Imperioli e Victoria Hill, respectivamente) para um suposto tributo póstumo. O cenário é minimalista — luzes duras, uma câmera estática, o silêncio pesado de quem sabe que não há mais tempo para mentiras. Ou talvez seja justamente o contrário: talvez esse seja o último momento em que as mentiras ainda possam ser moldadas em algo parecido com redenção. Schrader, sempre obcecado por homens em crise existencial, aqui eleva a aposta ao questionar não apenas as ações de seu protagonista, mas a própria natureza da verdade quando ela é filtrada pelo cinema.

A fotografia de Andrew Wonder oscila entre o documental e o onírico, como se não conseguisse decidir qual dos dois registros melhor captura a essência de Fife. Há planos em super close do rosto de Gere, onde cada ruga parece carregar uma história não contada, intercalados com imagens desbotadas de Elordi nos anos 1970, fugindo para o Canadá para escapar da Guerra do Vietnã. O preto e branco surge sem aviso, transformando flashbacks em algo entre a lembrança e a ficção. Em certos momentos, os dois atores ocupam a mesma cena, como se passado e presente coexistissem no mesmo quadro — um efeito que poderia ser mero artifício, mas que aqui ganha peso emocional. Afinal, quem nunca se viu dividido entre quem foi e quem gostaria de ter sido?
A montagem, porém, é onde Oh, Canadá mais arrisca — e onde mais tropeça. Schrader opta por um ritmo febril, com cortes abruptos que simulam a forma desordenada como as memórias surgem na mente de Fife. Quando funciona, é brilhante: em uma cena crucial, ele descobre sobre um aborto não autorizado, e a câmera se torna instável, quase sufocante, como se o chão sumisse debaixo dos pés do personagem. Já em outros momentos, a fragmentação parece mais confusa do que reveladora, com transições tão súbitas que quebram o fluxo emocional. É como se o filme, em seu afã de ser honesto sobre a desordem da memória, acabasse perdendo o espectador no processo.
Richard Gere entrega uma de suas performances mais nuas e vulneráveis. Seu Fife é um homem que já não tem energia para sustentar fachadas, mas que ainda tenta controlar a narrativa final de sua própria vida. Há uma cena em particular, onde ele olha fixamente para a câmera enquanto relata um ato de covardia juvenil, que é de uma intensidade rara — não pela grandiosidade do gesto, mas pelo contrário: é o olhar de quem finalmente enxerga a si mesmo sem autoindulgência. Jacob Elordi, por sua vez, traz a impulsividade da juventude, mas sem cair na caricatura. Seu Fife é arrogante, sim, mas também profundamente inseguro, como se cada atitude extrema fosse uma tentativa desesperada de provar algo — para os outros ou para si mesmo.

Uma Thurman, como Emma, a esposa que assiste à entrevista, é outro ponto alto. Em seus poucos momentos de fala, ela transmite anos de convivência com um homem que sempre manteve partes de si escondidas. Imperioli, no entanto, soa um pouco fora de sintonia — sua interpretação é mais teatral do que o tom do filme pede, como se estivesse em uma obra diferente ou sendo apenas mais uma caricatura de um cineasta.
Os melhores momentos de Oh, Canadá acontecem quando ele explorar o cinema como ferramenta de confissão — e também de autoengano. Fife passa a vida documentando a realidade dos outros, mas só no fim, diante da própria morte, ele se permite ser o sujeito da própria história. E mesmo assim, não há garantias de que o que vemos é “verdadeiro”. Será que importa? Schrader parece sugerir que não. No final, o que fica não são os fatos em si, mas o peso que carregamos por causa deles.
É um filme de excessos, escolhas questionáveis, momentos em que a ambição supera a execução. Mas também é uma obra que só poderia ter vindo de um cineasta que passou décadas esmiuçando a alma humana — especialmente a masculina — em suas contradições mais dolorosas. Se “Taxi Driver” era sobre a violência como forma de existência, e “Gigolô Americano” sobre o corpo como mercadoria, Oh, Canadá fala da mentira como sobrevivência. E talvez, no fim das contas, seja isso que todos fazemos: contamos histórias para nós mesmos até que elas se tornem suportáveis.
A última imagem do filme é a mais simples e a mais devastadora: Fife, sozinho, encarando a lente. Não há música dramática, nem diálogo, apenas o silêncio de quem já não tem mais nada a esconder — ou talvez de quem finalmente entendeu que nunca foi capaz de esconder coisa alguma. Oh, Canada não entrega respostas fáceis, mas levanta perguntas que ecoam muito depois que os créditos rolam. E no cinema, como na vida, às vezes é só disso que precisamos.
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