“Malandro é malandro, mané é mané”, a famosa frase de Bezerra da Silva ritma Os Enforcados, sob a direção de Fernando Coimbra. Filme que se destaca como uma obra multifacetada que entrelaça humor e tensão em uma narrativa rica e complexa, mas bastante identificável no imaginário popular. Com uma estrutura que evoca a dramaturgia shakespeariana, o filme aborda questões como racismo, moralidade e a insaciável sede de poder, ambientado no vibrante e autêntico subúrbio carioca.
Em Os Enforcados, Regina (Leandra Leal) e Valerio (Irandhir Santos) estão felizes no relacionamento e levam uma vida descontraída na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Mas desde a morte do pai de Valerio, o maior mafioso da cidade, eles procuram uma saída do ninho de vespas criminosas que é o negócio da família desta família. Mas ao mesmo tempo, o casal também têm despesas e dívidas para quitar e o tio de Valerio, Linduarte (Stepan Nercessian) insiste que o sobrinho assuma o negócio. Numa noite acidental, os dois encontram uma solução para o problema: matar o tio e vender o negócio. Mas ao fazer isso, mergulham ainda mais na violência da qual queriam escapar.
Humor e tensão
A direção de Fernando Coimbra, já reconhecida pelo excelente “O Lobo Atrás da Porta”, brilha mais uma vez em Os Enforcados. Sua habilidade em utilizar o humor como um alívio cômico em meio a questões pesadas é um dos grandes trunfos do filme. Coimbra, contando com os ótimos Irandhir Santos e Leandra Leal, como o casal protagonista, apresenta momentos de leveza em situações de alta tensão, criando um contraste que permite uma conexão emocional com os personagens, mesmo em seus dilemas morais dúbios.
O subúrbio como cenário
O subúrbio carioca se torna um verdadeiro protagonista na narrativa, intensificando os conflitos de poder e as lutas internas dos personagens. Coimbra utiliza este ambiente para moldar as decisões e os destinos dos protagonistas. As ruas, os bares, a quadra de uma escola de samba e as casas são ricamente detalhados, e a cinematografia de Ulisses Malta Jr. captura essa essência, criando uma estética que mescla crueza e poesia, refletindo a vida intensa e multifacetada do subúrbio.
Assim como ele já fez em O Lobo Atrás da Porta, o diretor se distancia de um Rio de Janeiro idealizado dos cartões postais, muito comuns em telenovelas, mas também não quer fazer um retrato fetichista da pobreza de comunidades, como também é comum no cinema, sobretudo em obras da Retomada.
De uma maneira bastante elogiosa, não seria exagero dizer que personagens de “A Grande Família” poderia estar nesse cenário. Ao mesmo tempo os momentos de violência são discretamente sugeridos, criando uma atmosfera de suspense que mantém os espectadores na ponta da cadeira sem recorrer a excessos gráficos.
A malandragem do carioca
Leandra Leal entrega uma performance divertidíssima como Regina, uma mulher que transita entre a vulnerabilidade e a astúcia. Sua habilidade em capturar a complexidade da personagem — que oscila entre a manipuladora e a vítima — é notável. Valério, interpretado por Irandhir Santos, é igualmente cativante. Inicialmente inseguro, sua transformação em um chefe do crime convincente é marcada por uma evolução genuína de machismo e autoconfiança. Toda essa evolução é movida por um fetiche compartilhado pelo casal.
Outro destaque é a atuação de Irene Ravache como Helena, a mãe de Regina, que, com suas previsões de tarô e conselhos hilários, adiciona uma camada cômica que contrasta perfeitamente com o enredo sombrio. A interação entre mãe e filha traz um alívio cômico necessário e enriquece a narrativa, evidenciando as relações familiares complexas que permeiam o filme.
Uma tragédia de erros
No filme Coimbra ressoa fortemente com temas shakespearianos, especialmente aqueles relacionados à ambição, traição e a complexidade das relações humanas. A dinâmica entre Regina e Valério reflete a turbulenta relação de Macbeth e Lady Macbeth, onde a manipulação e a sedução se entrelaçam em um jogo mortal de poder. Regina, como uma figura que instiga e dirige Valério a cometer crimes, ecoa a figura da mulher fatal, típica de Shakespeare, desafiando as normas sociais e revelando a fragilidade das alianças familiares. A busca implacável por controle e domínio sobre o legado deixado pelo pai se torna um palco para a tragédia, onde as consequências das escolhas impulsivas revelam a fragilidade da moralidade humana.
Além disso, o filme captura o espírito de tragédia shakespeariana através da inevitabilidade do destino e do peso das decisões. A maneira como os personagens se veem presos em uma teia de mentiras, onde os protagonistas frequentemente são tragicamente levados a confrontar os resultados de suas ações. As reviravoltas inesperadas do enredo sublinham a ideia de que, assim como em Hamlet ou Othello, as paixões descontroladas e os impulsos sombrios podem levar à autodestruição.
A atmosfera de paranoia e o subtexto de assassinato revelam a condição humana em sua forma mais crua, questionando até onde as pessoas estão dispostas a ir por poder e sobrevivência, uma reflexão profunda que permeia tanto a obra de Coimbra quanto a dramaturgia de Shakespeare.
Os Enforcados é uma obra que mescla a tensão do thriller com a leveza do humor, criando uma experiência cinematográfica rica e tipicamente brasileira. A imprevisibilidade da trama, com reviravoltas surpreendentes, mantém o público cativado até o último minuto. É um filme que não apenas entretém, mas também provoca reflexões sobre as escolhas que fazemos e os limites que estamos dispostos a ultrapassar para nos proteger.
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